“Meu”
Vishakha Devi Dasi
O primeiro dia na creche oferece uma lição para a mãe.
Já que a creche seria uma experiência nova para o nosso bebê de dois anos de idade, na primeira manhã, fiquei na escola para ajudá-la a se ajustar. Por um tempo, ela se agarrou a mim, apreensiva, até que ficou intrigada com alguns brinquedos. Ao encontrar um que ela gostava particularmente, segurou-o com força e declarou às outras crianças: “Meu”. Como ficou claro que ela estava se sentindo confortável no novo lugar, logo voltei para casa, refletindo sobre sua declaração.
Nada naquela casa era dela, mas, quando encontrou algo que a atraía, decidiu que era “meu”.
E é exatamente isso o que eu fiz. Vim a este mundo de mãos vazias, vou sair daqui de mãos vazias e, nesse ínterim, declaro tantas coisas como “minhas”: “minha confortável casa de três quartos”, “meu bebê de dois anos de idade de olhos brilhantes e cabelos encaracolados”, “meu elegante Power Macintosh”. Da mesma forma que possuir esse brinquedo deu à minha filha um sentimento de pertença e importância, eu, pensando possuir isto ou aquilo, tenho uma sensação similar.
Pode-se argumentar: “Mas esse brinquedo não era da sua filha. Ela não tinha o direito de reivindicá-lo. O seu caso é diferente. Você comprou sua casa e seu computador; você criou sua família”.
E, em certo sentido, isso é verdade. Em um sentido mais elevado, entretanto, não é. Observemos a nossa casa. Eu não posso criar nenhuma das matérias-primas – a madeira, a areia, a água, o metal – que a formaram. Quanto ao dinheiro que contribuiu para comprá-las, seja qual for o talento que eu usei para ganhar esse dinheiro, também não é meu, porque pode ser tomado de mim a qualquer momento. Se o talento ou a inteligência fossem realmente meus, eles não poderiam ser tirados de mim. Mas podem, o que é evidência de que estão vindo de outro lugar, de Deus, do Senhor Krishna. E a terra, a água e a madeira são Suas energias; nenhuma pessoa, por mais poderosa que seja, pode criar esses elementos.
Muitos livros de sabedoria desestimulam a tendência a crescer apegado ao que não podemos manter. Por exemplo, o Bhagavad-gita diz que o Supremo Senhor Krishna é o criador original supremo, proprietário e desfrutador de tudo o que há. Então, na verdade, nada é meu. Tudo é dEle, e Ele gentilmente me atribuiu uma pequena porção dos Seus bens.
Mesmo que eu cuide da “minha” casa, “minha” família e “meu” dinheiro, não posso reivindicá-los como meus. Sou como um caixa de banco, que lida com o dinheiro do banco, mas não pode reivindicá-lo. Um caixa de banco que decide: “Ah! Eu tenho milhares de dólares à minha disposição. Deixe-me usar alguns do jeito que eu quiser”, é susceptível a perder tudo – o emprego, os salários, a liberdade e a respeitabilidade.
Da mesma forma, porque acho que algo é “meu”, estou perturbada pela ansiedade. Preocupo-me que o que eu tenho não seja o suficiente ou que eu possa perdê-lo. O mesmo prazer que busco ao adquirir essas coisas me ilude, e, acima de tudo, permaneço atada em consciência material.
Srila Prabhupada explicou que, para a paz pessoal (assim como a nacional e a internacional), devemos aceitar que tudo pertence a Deus e que tudo é para o Seu desfrute, que a nossa função e o nosso dever é usar em Seu serviço o que quer que Ele tenha repartido conosco. Essa percepção vai nos libertar do anseio e da lamentação, nos livrando do estorvo da ansiedade, nos permitindo ser felizes.
O cavalo de brinquedo que minha filha tinha audaciosamente afirmado como seu aquela manhã era uma imitação de plástico praticamente inútil de um cavalo real. Do ponto de vista espiritual, os bens materiais que afirmo como meus também não têm valor. Por quê? Porque, por um lado, eles são temporários – eu vou ter que deixá-los para trás quando morrer. Contudo, além disso, quando comparado à minha vida natural – a vida eterna de bem-aventurança e conhecimento no mundo espiritual – minhas posses materiais premiadas são sem importância, a menos que eu as utilize a serviço de Krishna e de Seus devotos.
Na parte da tarde, quando voltei para pegar minha filha, estava um pouco preocupada. O cavalinho que ela alegou ser seu poderia ter levado ela a acessos de raiva, desencadeado uma grande briga e ter deixado cansado um professor. Com alívio, descobri que, pouco depois que eu tinha ido embora, minha filha esquecera o “seu” brinquedo quando a professora a incentivou a cantar com as outras crianças. Que eu possa semelhantemente ser guiada para longe das “minhas” coisas e ser levada a Krishna e ao Seu serviço.
Tradução de Chitralekha Devi Dasi. Foto: Shutterstock. Arte: Premamrita Devi Dasi. Todo o conteúdo das publicações de Volta ao Supremo é de inteira responsabilidade de seus respectivos autores, tanto o conteúdo textual como de imagens.
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