O que um Santo Aprendeu com uma Prostituta
Chaitanya-charana Dasa
A frustração dá lugar à iluminação durante uma extraordinária noite na vida de uma prostituta
Enquanto as prostitutas são frequentemente retratadas negativamente na literatura tradicional, alguns textos religiosos as retratam positivamente como testemunhas da potência transformadora da graça divina. Assim, no Evangelho, encontra-se a história de uma prostituta (considerada por alguns como sendo Maria Madalena) que foi resgatada por Jesus. Na literatura gaudiya-vaishnava, tal como o Chaitanya-charitamrita, encontra-se a história do santo Haridasa Thakura, que libertou uma prostituta que havia sido contratada para orquestrar sua queda.
Prostitutas como Professoras
Enquanto tais narrativas que retratam as prostitutas como receptoras de sabedoria não são incomuns, as narrativas que as retratam como professoras de sabedoria são menos comuns. Na tradição vaishnava, encontramos uma dessas narrativas na vida do santo medieval Bilvamangala Thakura. No período anterior à sua vida como santo, ele era apegado a uma prostituta chamada Chintamani, que era quase como sua amante. Uma vez, ele enfrentou uma forte tempestade, uma noite escura e um rio inundado para chegar até ela. Quando ela viu a grande dificuldade que ele havia passado para chegar até ela, exclamou: “Se você tivesse enfrentado toda essa dificuldade para alcançar Deus, você teria se tornado um santo.” Essas palavras atingiram Bilvamangala com mais força do que qualquer um dos relâmpagos daquela noite tempestuosa – elas sacudiram sua inteligência espiritual, tirando-a do sono. Ele lhe agradeceu, renunciou ao mundo e partiu para Vrindavana, onde se tornou um dos mais célebres poetas santos da tradição vaishnava.
A narrativa de Bilvamangala apresenta uma prostituta falando uma exortação devocional, mas uma narrativa no Srimad-Bhagavatam apresenta uma prostituta cantando uma canção repleta de diversos insights filosóficos. Essa canção encontra-se no oitavo capítulo do décimo primeiro canto do Bhagavatam na seção chamada de Uddhava-gita (que se estende dos capítulos seis a vinte e nove), que é a instrução de Krishna a Uddhava. Dentro da Uddhava-gita, existe uma seção conhecida como Bhiksu-gita, a canção do renunciante. Embora alguns considerem este renunciante como Dattatreya, uma encarnação do Senhor, o Bhagavatam se refere a ele simplesmente por sua designação social como “o brahmana” ou como um avadhuta (aquele que transcendeu as convenções sociais normais). Na Bhiksu-gita, esse santo instrui o rei Yadu sobre as verdades da vida, compartilhando o que ele aprendeu com seus vinte e quatro gurus. Um desses gurus é uma prostituta chamada Pingala.
Gurus que Ensinam Sem Ensinar
A Bhiksu-gita oferece uma concepção de guru diferente da concepção padrão de um sábio professor instrutor. Um guru instrutor é essencial para o crescimento espiritual de um buscador, e o Bhagavatam está cheio de narrativas de tais gurus instruindo os buscadores sobre as verdades da vida. Mas o Bhagavatam na Bhiksu-gita transfere o ônus do aprendizado do professor para o buscador. Quando o ônus da transferência efetiva do conhecimento está no guru, os buscadores podem se tornar passivos, pensando que transmitir o conhecimento das escrituras de uma maneira que eles possam interiorizar é responsabilidade do guru. Para evitar tal passividade entre os buscadores, esta seção de Bhagavatam informa que eles precisam assumir a responsabilidade de interiorizar o conhecimento das escrituras. Como? Se os buscadores observarem o mundo atentamente, eles podem ver as verdades da vida demonstradas através dos acontecimentos no mundo. As coisas no mundo que demonstram as verdades da vida também podem ser consideradas gurus, pois elas reafirmam e reforçam os ensinamentos do guru. A Bhiksu-gita usa a palavra guru neste sentido diferenciado e expandido.
O Bhagavatam não descreve, ou mesmo insinua, qualquer interação entre o brahmana e Pingala. De fato, o brahmana não recebe instruções verbais, ou mesmo interage diretamente com qualquer um de seus muitos gurus, apesar do que eles atuam como fontes de edificação espiritual para ele. Todas as lições que ele aprende com eles são conclusões que ele tira ao observá-los. Quando ele descreve qualquer evento do qual aprendeu algo valioso, ele narra esse evento na voz de um narrador onisciente. Poderia ser dito que ele simplesmente estava no lugar certo na hora certa, mas tem algo mais. Ele também tinha a disposição certa – um zelo implacável para aprender que lhe permitiu observar a coisa certa e tirar a lição certa. Ele aprende de Pingala o poder do desapego: com isso é possível alcançar a paz e a felicidade (11.08.27) atuando como uma espada que liberta das tortuosas algemas dos desejos (28).
A Frustração da Prostituta
A história de Pingala começa (22) com o que seria a típica rotina diária – ou, mais precisamente, noturna – de uma prostituta. Ao entardecer, Pingala se veste e se decora sedutoramente (23: bibhrati rupam uttamam) e sai de sua casa para atrair um dos muitos homens que estão passando pela estrada. Como qualquer outra mulher em sua profissão, ela está procurando um homem rico que pagará seus encargos (24: sulka-dan vittavatah), e que talvez até dê algo extra se ele for generoso (25: bhuri-dau). No entanto, ela está à procura de algo mais – ela espera conseguir não apenas um cliente, mas um amante que lhe dê afeto e prazer. O Bhagavatam afirma – e ela mesma menciona repetidamente em sua canção, à qual chegaremos devidamente – que ela estava procurando um amante (kantau). O entardecer se transforma em noite, e a noite em meia-noite, mas ninguém a aborda. Perplexa, desapontada e exausta, ela volta ao seu quarto para cochilar, mas acorda repentinamente e se apressa, temendo que ela possa perder um cliente. Tentando desesperadamente atrair alguém, ela percorre a rua mais abaixo, mas sem sucesso. Enquanto sua esperança de ter algum sucesso naquela noite se esvai, ela, desapontada e infeliz, surpreende-se com um momento de “eureka”. O Bhagavatam (27) afirma que um grande sentimento de desapego desperta dentro dela (nirvedau paramo jaje). Esse desapego não apenas remove sua ansiedade, mas também a substitui por felicidade (chinta-hetuh sukhavahah). Ela analisa e verbaliza sua epifania na forma de uma célebre canção que às vezes é cantada com acompanhamento musical, da mesma forma que outras canções mais conhecidas do Bhagavatam, como a Gopi-gita.
A Canção de Pingala
Ela começa (30) observando-se de uma perspectiva fora de si mesma, lamentando até o ponto que havia caído em ilusão por causa de sua mente descontrolada. Às vezes, somos levados por nossa mente e, sob seu feitiço, fazemos algo indesejável por algum tempo até que repentinamente saímos do estupor e ficamos chocados ao ver o quanto nos afastamos de onde queríamos estar. Chegando a uma autoconsciência súbita semelhante, Pingala lamenta sua loucura ao procurar amantes sem valor (asatam kama).
Por que ela considera seus amantes sem valor é revelada no verso seguinte (31), onde ela os compara ao Senhor que reside no seu próprio coração e que concede a riqueza suprema e o prazer definitivo. Em comparação com aquele que está esperando para ser seu amante eterno, todos os amantes do mundo são insignificantes.
No verso seguinte (32), ela lamenta que, em vez de se esforçar para agradar a um Senhor tão maravilhoso, ela tenha lutado em vão para agradar àqueles que são eles próprios atormentados pela luxúria e ganância, e são, portanto, lamentáveis. Assim, ela os compara ainda mais com o Senhor a quem ela se referiu anteriormente como o reservatório e o provedor da felicidade (31: ramanam rati-pradam). Ela lamenta ter-se atormentado futilmente ao assumir a lastimável profissão de prostituta (sanketya-vatti). Em seu comentário, Bhaktisiddhanta Sarasvati Thakura elabora que sanketya-vatti refere-se mais especificamente à vocação de usar o próprio corpo para fazer gestos (sanketa) que agitam sexualmente as pessoas. O que Pingala reconhece como uma profissão lamentável é hoje uma profissão muito lucrativa, com os lucros da indústria pornográfica excedendo os lucros combinados de todas as franquias profissionais de futebol, beisebol e basquete.
Depois de discernir assim a insignificância de seus amantes, ela então analisa (33) a insignificância do outro componente em sua busca do prazer: seu belo corpo. Comparando o corpo de forma pouco lisonjeira a uma casa, os ossos como vigas, ela atribui sua beleza ao trabalho de revestimento feito com camadas de pele, cabelo e unhas – coisas que as mulheres embelezam de várias maneiras. No entanto, nenhum trabalho de revestimento é perfeito; o que é coberto vem à tona de uma forma ou de outra. Todos os corpos, inclusive os mais bonitos, emanam suor, urina e fezes, lembrando-nos forçosamente de que a beleza profunda da pele nem sempre permanece tão profunda – a ilusão da beleza corporal se torna aparente periodicamente, mesmo ao nível da pele.
Tendo assim analisado a futilidade de buscar o prazer através do corpo e daqueles que amariam o corpo, ela volta (34) a lamentar sua loucura em perseguir tais amantes em vez do amante supremo, o infalível Senhor (acyuta) que lhe teria concedido uma forma espiritual eternamente bela (atma-dat).
Glorificando o Senhor com uma enxurrada de epítetos – Ele é seu benfeitor, amante, mestre e companheiro residente – ela então resolve (35) alcançá-lO, oferecendo-se a Ele. Adotando como seu modelo a Deusa da Fortuna, que se oferece ao Senhor e se deleita com Ele, Pingala resolve se render ao Senhor de forma semelhante e assim “comprá-lO” (vikriya). O uso da sua linguagem monetária a faz relembrar de suas esperanças anteriores de adquirir amantes através da venda de seu corpo. Ela também aponta para a natureza inclusiva de bhakti, que nos pede para não renunciar as coisas mundanas, mas para usá-las a serviço do Senhor. Podemos usar nosso corpo e nossos talentos corporais, devidamente ajustados, a serviço do Senhor.
Para que nenhuma atração ainda permaneça em seu coração pelos amantes mundanos, ela os rejeita (36) perguntando retoricamente que mesmo os melhores deles, ao nível dos deuses, são temporários – que prazer podem oferecer a suas esposas?
Ao sentir seu desapego forte e inesperado, ela contempla de onde ele veio. Ela supõe (37) que a fonte poderia ser apenas uma – o Senhor Vishnu, que de alguma forma estava satisfeito com ela. Demonstrando uma humildade louvável, ela não toma para si o crédito pela mudança em seu coração, senão que, em vez disso, dá o mérito ao Senhor.
Ela, então, reflete (38) sobre aquilo que antes parecia ser uma infelicidade – a ausência de clientes para satisfazer seu desejo. Graças ao seu despertar espiritual, ela agora vê que seu sofrimento não se devia à frustração do desejo, senão que era causado por estar dominada pelo desejo. Aqui está um exemplo para entender isso.
Suponha que um desejo por álcool tire um alcoólatra em recuperação da cama no meio da noite. Ele se locomove de carro para um bar próximo, mas descobre que o estoque de álcool dele acabou. Ele se sente muito infeliz e atribui sua tristeza à frustração de seu desejo por álcool. Mas suponha que de repente ele tenha uma epifania: “Enquanto os outros dormem tranquilamente em suas camas, eu ando vagando pela noite, arrastado para fora da cama e do outro lado da cidade a uma hora inacreditável. Por quê? Porque o desejo por álcool está me dominando.” Ao entender como o desejo o escravizou, um profundo desapego se desenvolve dentro dele – o desejo por alguns goles de bebida desaparece de repente de sua mente. O fim desse desejo tortuoso o torna pacífico, assim como, digamos, o fim de uma perturbadora dor nas costas torna pacífico um paciente.
Com esse exemplo, podemos entender quando Pingala diz que o sofrimento não é um infortúnio caso desperte o desapego, porque esse desapego traz uma grande paz (samam acchati).
Sentindo-se convencida de que seu sentimento de desapego é de fato um favor concedido pelo Senhor, ela resolve (39) valorizar agradecidamente esse desapego, primeiro evitando situações e desejos materialistas e, em segundo lugar, procurando o abrigo do Senhor. Sua resolução de se afastar dos estímulos materialistas é uma precaução necessária, semelhante à resolução dos alcoólatras em recuperação de se manterem longe dos bares – eles sabem que estão sempre “a um copo de distância de uma recaída”.
Em seu próximo verso (40), ela conta como planeja se abrigar no Senhor: ela ficará materialmente satisfeita com o que quer que obtenha por meios honrosos (yatha-labhena jivati) e não buscará prazer em nenhum outro lugar, exceto no nível espiritual do Senhor, que é o reservatório do prazer (atmana ramanena vai).
No verso seguinte (41), ela transmite metaforicamente a situação que atormenta a todos nós – caímos em um poço escuro (samsara-kupe patitam), que representa a existência material e ignorante na qual estamos, saídos da consciência espiritual, que é normal para nós como almas. Pior ainda, nós nos tornamos cegos pelos objetos sensoriais (visayair musiteksanam), que rebitam nossa consciência ao nível material da realidade e nos tornam alheios ao nível espiritual. O pior de tudo: fomos apanhados pela serpente do tempo, que nos puxa para dentro de sua barriga a cada momento que passa. Ela conclui essa triste descrição perguntando retoricamente: “Quem, além do Senhor, pode nos resgatar?” A tradição de bhakti frequentemente expande a metáfora do poço retratando o Senhor como o salvador fora do poço que joga uma corda para nós. E a corda é o processo de bhakti-yoga, que eleva nossa consciência do nível material para o nível espiritual.
No último verso de sua canção (42), ela usa novamente a metáfora do tempo como uma serpente, expandindo seu âmbito do indivíduo para o mundo inteiro, o qual, sendo perecível, está a ponto de ser devorado pela serpente. Ela declara que somente quando vemos a temporariedade de toda a existência material e nos desapegamos dela, podemos nos tornar nossos próprios protetores. Ou seja, somente com tal visão é que nos colocaremos firmemente sob a proteção do Senhor. Voltando à metáfora do poço, somente quando estivermos convencidos de que o poço é um lugar terrível é que seguraremos a corda com firmeza, ou seja, praticaremos bhakti com determinação. Na medida em que nos mantemos na proteção do Senhor, a essa medida nos tornamos nossos próprios protetores.
Do Desejo Negador da Vida ao Desejo Afirmador da Vida
A narrativa de Pingala termina em uma nota que pode parecer um anticlímax – ela se senta pacificamente em sua cama e adormece feliz. Essa é uma atividade tão comum que podemos perder seu valor aqui. Para uma prostituta, não conseguir um único homem durante a noite é tão ruim quanto para um lojista não conseguir um único cliente durante o dia. O lojista ficaria irritado, preocupado, frustrado – e poderia muito bem perder o sono durante a noite toda por causa disso. O fato de que Pingala, após uma péssima noite de negócios, pudesse dormir feliz indica que o seu desapego era real.
Sua história termina aqui. Não nos é dado nenhum registro posterior. Isso é compreensível, pois o narrador brahmana não está esboçando histórias de vida, mas está tirando lições de vida. Assim, ele conclui esta narração (44) reiterando a lição que aprendeu com ela – uma lição que ressoará com qualquer pessoa que tenha sido viciada em qualquer coisa: “O desejo é a causa do sofrimento; a liberdade do desejo é a causa da felicidade.”
Para que esta mensagem conclusiva de abandono do desejo não soe como uma negação à vida, precisamos lembrar que a mensagem central do Bhagavatam não é a erradicação do desejo, mas seu redirecionamento da matéria para Bhagavan, o Senhor Supremo, que é o epônimo e o propósito central de todo o livro. Refletindo esse espírito de redirecionamento positivo, a própria Pingala deseja (36) servir amorosamente ao Senhor e deleitar-se eternamente nEle. E o desejo de amar e servir a Krishna é, eminentemente, uma afirmação de vida. Tais desejos espirituais nos dão acesso à felicidade devocional nesta mesma vida. E eles também satisfazem nosso desejo de uma vida ininterrupta, passando pela aflição e pela morte, e nos impulsionando à morada eterna do Senhor, a morada livre de ansiedade (Vaikuntha).
O desejo mundano ou o desejo divorciado de Krishna é uma negação à vida porque nos afasta daquele que é o pivô da vida eterna e extática. A narrativa de Pingala, ao concluir com um chamado para rejeitar tais desejos, estabelece o cenário para uma vida animada pela realização de desejos espirituais.
Tradução de Krishnakanta Gopalini Devi Dasi. Revisão de Bhagavan Dasa.
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