Reflexões sobre Deus e a Ciência

capa_deus_e_cienciaSadaputa Dasa

O conhecimento de Deus e a ciência convencional são conciliáveis?

Em uma resenha publicada na Scientific American, Stephen Jay Gould, evolucionista da Universidade de Harvard, aponta que muitos cientistas não veem contradição entre as crenças religiosas tradicionais e a visão de mundo da ciência moderna. Observando que muitos evolucionistas são devotos cristãos, ele conclui: “Ou metade dos meus colegas são imensamente estúpidos, ou então a ciência do Darwinismo é totalmente compatível com as crenças religiosas convencionais e igualmente compatível com o ateísmo, provando, assim, que os dois grandes âmbitos da natureza fatual e a fonte da moralidade humana não se sobrepõem tanto assim”.1

A questão de se a ciência e a religião são compatíveis ou não vem à tona com frequência, e o próprio Gould aponta que está lidando com isso pela “enésima milionésima vez”. É uma questão para a qual as pessoas tendem a responder de forma confusa. Definições de Deus e de Seus modos de agir no mundo parecem bastante elásticas, e o desejo de combinar teorias científicas com doutrinas religiosas tem impelido muitas pessoas pouco meticulosas a esticá-las até o limite. No final, alguémem que ceder. Dr. John A. O’Keefe, astrônomo da NASA e católico praticante, disse: “Entre os biólogos, o sentimento tem sido, desde Darwin, de que toda criação complexa da vida é um acidente, que surgiu devido a mecanismos da seleção natural nos químicos da concha da terra. Isso é bem verdade…”2

O’Keefe aceita que a vida se desenvolveu na Terra em sua completude por meio de processos físicos no formato proposto por Darwin. Ele enfatiza, no entanto, que muitas características das leis da física têm os valores exatos para permitir a vida conforme a concebemos. Ele conclui, a partir disso, que Deus criou o universo para a vida do ser humano – mais precisamente, Deus o fez no momento do Big Bang, quando o universo e suas leis físicas expandiram-se a partir do nada.

Para apoiar essa ideia, O’Keefe cita o Papa Pio XII, que disse, ao dirigir-se à Pontifícia Academia de Ciências em 1951:

De fato, parece que a ciência atual, com um único passo para trás que perpassa milhões de séculos, conseguiu testemunhar o primordial Fiat Lux (“Faça-se a luz”), murmurado no momento em que, junto à matéria, explodiu do nada um mar de luz e radiação, enquanto as partículas de elementos químicos partiram-se e formaram milhões de galáxias.3

Isso parece uma união entre religião e ciência aceitável no âmbito da razão. Deus cria o universo em um instante; depois tudo acontece de acordo com os princípios científicos aceitos. De todos os quinze milhões de anos da história do universo, a primeira minúscula fração de segundo pode ser considerada como solo sagrado, protegida do escrutínio científico. Os cientistas vão respeitar o limite desse território sagrado?

Certamente não. Stephen Hawking, detentor da cadeira de Isaac Newton na Universidade de Cambridge, uma vez participou de uma conferência sobre cosmologia organizada por Jesuítas no Vaticano. A conferência terminou com uma audiência com o Papa. Hawking relembra:

Ele disse que tudo bem estudar a evolução do universo depois do Big Bang, mas não deveríamos indagar sobre o Big Bang em si porque aquele foi o momento da Criação e, portanto, obra de Deus. Alegrei-me, então, por ele não saber o assunto da fala que eu havia recém-feito na conferência, sobre a possibilidade de o espaço-tempo ser finito mas não ter fronteiras, o que significa que não teria início, nem um momento de criação.4

 Seja a teoria de Hawking aceita ou não, esse episódio demonstra que a ciência não permite que qualquer aspecto da realidade objetiva fique de fora de seus domínios. Podemos avançar mais nessa perspectiva ao considerarmos o ponto de vista de Owen Gingerich, do Centro de Astrofísica Harvard Smithsonian. Em uma palestra sobre cosmogonia moderna e criação bíblica, Gingerich também interpretou o Big Bang como a ação criadora de Deus. Afirmou que somos criados à imagem de Deus e que, dentro de nós, reside “uma centelha criativa divina, um toque da consciência infinita, e a própria consciência.”5

O que é essa “centelha divina”? As palavras de Gingerich  sugerem que é espiritual e dá origem a uma conduta objetivamente observável envolvendo a consciência. Mas a ciência convencional rejeita a ideia de uma entidade consciente não-física que influencia a matéria. A “centelha divina” poderia ser, então, outro nome para o cérebro, com sua programação comportamental atrelada à evolução genética e cultural? Se é isso que Gingerich quis dizer, ele certamente escolheu mal as palavras para expressá-lo.

Freeman Dyson, do Instituto Princeton de Estudos Avançados, chegou a ideias similares às de Gingerich, mas em uma perspectiva não-cristã.

Não defendo que a arquitetura do universo prove a existência de Deus. Afirmo apenas que a arquitetura do universo é consistente com a hipótese de que a mente tem papel fundamental em seu funcionamento… Alguns de nós podem estar dispostos a sustentar hipóteses de que existe uma mente universal ou alma do mundo (anima mundi) que subjaz às manifestações da mente que observamos… A existência de uma alma do mundo (anima mundi) é uma questão que pertence à religião, e não à ciência.6

Dyson aceita a teoria de Darwin de variação e seleção natural totalmente. Mas ele também concede à mente um papel ativo no universo: “Nossa consciência não é só um epifenômeno conduzido por eventos químicos em nossos cérebros, mas um agente ativo forçando os complexos moleculares a fazer escolhas entre um estado quântico e outro.”7 Ele também sente que o universo pode, de certa forma, ter sabido que viríamos e se preparado para nossa chegada.8

Dyson beira a heresia científica, e não pode fugir dessa acusação simplesmente dizendo que está falando de religião e não de ciência. A mecânica quântica une a eventualidade e o observador consciente. Dyson usa isso como brecha para inserir a mente no fenômeno da natureza. Mas se eventos quânticos aleatórios seguem estatísticas quânticas conforme foram calculadas pelas leis da física, então a mente não tem escolha a não ser seguir o fluxo como epifenômeno passivo. E se a mente pode fazer eventos quânticos seguirem diferentes estatísticas, então a mente viola as leis da física. Essas violações são rejeitadas não apenas por físicos, mas também por evolucionistas, que com certeza não veem acontecimentos gerados pela mente executando papéis relevantes na origem das espécies.

Pode parecer que O’Keefe, Gingerich e Dyson estão promovendo ideias religiosas cientificamente inaceitáveis. Inaceitáveis porque propõem uma história dos fatos extra-científica que recai no domínio selecionado pela ciência: o domínio do fenômeno real.

Para ver  o que é cientificamente aceitável, voltemos para as afirmações de Stephen Jay Gould. Em sua resenha na Scientific American, Gould diz: “A ciência trata da realidade fatual, enquanto a religião luta com a moralidade humana.”9 É possível comparar com uma declaração do eminente teólogo Rudolf Bultmann: “A ideia de Deus é imperativa, não indicativa; ética, e não fatual.”10

O ponto a que Gould e Bultmann querem chegar é de que Deus não tem nada a ver com os fatos do mundo real. Deus não está envolvido com o que é, mas sim com o que virá a ser, não com o fenômeno do mundo, mas com os valores morais e éticos das pessoas.

É claro, uma afirmativa dita ou escrita do que virá a ser é parte do que é. Então, se Deus está fora do que é, Ele não pode ser a fonte de tudo o que virá a ser. Estas devem ser apenas afirmações humanas, assim como o são todas as afirmações sobre Deus. Conforme colocado por Don Cupitt, filósofo da religião da Universidade de Cambridge, “não há mais nada lá fora para corresponder com a fé, então o único teste de fé hoje é a forma como ela funciona na vida. Os objetos de fé, tais como Deus, são vistos como ideais espirituais pelos quais vivemos, e não como seres.”11

Isso pode soar como ateísmo, e é. Mas não podemos parar aí. As atividades religiosas humanas são parte do mundo fatual, portanto também recaem no âmbito da ciência. Enquanto religiosos “lutam com a moralidade”, cientistas inquisidores lutam para explicar o comportamento religioso exclusivamente humano no reino animal nos termos da teoria da evolução de Darwin. Houve um presságio disso pelo próprio Darwin em suas primeiras anotações: “Amor pelo efeito divino de organização, seu materialista!”12 Ideias religiosas, incluindo amor por Deus, devem surgir da estrutura e condicionamento do cérebro, e estes por sua vez devem vir pela evolução cultural e genética. O próprio Darwin nunca tentou desenvolver essas ideias extensivamente, mas, nos últimos anos, isso foi feito por alguns sociobiólogos, como Edward O. Wilson.13

Então, a ciência do darwinismo é totalmente compatível com crenças religiosas convencionais? Isso depende das convenções de cada um. Se por “Deus” você entende um ser espiritual real que controla os fenômenos naturais, mesmo em um nível tênue, então o darwinismo rejeita prontamente sua ideia, não porque a ciência a desaprova empiricamente, mas porque a ideia vai contra a programação científica fundamental de explicar todos os fenômenos pelas leis da física. As crenças religiosas são compatíveis com o darwinismo somente se afirmarem que Deus é simplesmente uma ideia humana com alguma conexão com imperativos morais. Mas se é nisso que você acredita, então, ao invés de ter crenças religiosas, você tem crenças “científicas” sobre religião.

A julgar pelas ideias teístas de O’Keefe, Gingerich e Dyson, muitos cientistas “nem um pouco estúpidos” creem em Deus e no darwinismo. Mas em seus esforços para combinar ideias verdadeiramente incompatíveis, sucumbem a um raciocínio demasiado confuso. Assim, cometem heresia científica, apesar de tudo. Se se está interessado no conhecimento de Deus, deve-se admitir que esse conhecimento não é compatível com a ciência convencional, e particularmente com o darwinismo.

Notas

  1. Gould, Stephen Jay, “Impeaching a Self-Appointed Judge,” Scientific American, July 1992, p. 119.
  2. Jastrow, Robert, God and the Astronomer, NY: Warner Books, Inc., 1978, p. 138.
  3. Jastrow, Ibid., pp. 141-2.
  4. Hawking, Stephen, A Brief History of Time, NY: Bantam Books, 1988, p. 116.
  5. Gingerich, Owen, “Let There Be Light: Modern Cosmogony and Biblical Creation,” an abridgement of the Dwight Lecture given at the University of Penna. in 1982, pp. 9-10.
  6. Dyson, Freeman, Disturbing the Universe, NY: Harper & Row, 1979, pp. 251-52.
  7. Dyson, Ibid., p. 249.
  8. Dyson, Ibid., p. 250.
  9. Gould, Ibid., p. 120.
  10. Cupitt, Don, Only Human, London: SCM Press, Ltd., 1985, p. 212.
  11. Cupitt, Ibid., p. 202.
  12. Paul H. Barrett, et al., eds., Charles Darwin’s Notebooks, 1836-1844, Ithaca, NY: Cornell University Press, 1987, p. 291.
  13. Wilson, Edward O., On Human Nature, Cambridge, Mass.: Harvard University Press, 1978.

 

Tradução de Elisa Seerig. Revisão de Thiago Braga (Bhagavan Dasa).

Sadaputa Dasa estudou na Universidade Estadual de Nova Iorque e na Universidade de Siracusa, recebendo mais tarde uma bolsa da Academia de Ciências Americana para continuar seus estudos. Ele prosseguiu sua carreira acadêmica, defendendo seu doutorado em Matemática na Universidade de Cornell, especializando-se em teoria probabilística e mecânica estatística.

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