O Diálogo que Adiou uma Guerra: Perguntas e Respostas sobre a Bhagavad-gita
Entrevista com Jagadisha Dasa
Yoga, renúncia e vacas – esses são alguns dos temas da Bhagavad-gita, possivelmente a obra religiosa de origem indiana mais famosa e querida em todo o mundo. Qual é a estrutura da Bhagavad-gita? Onde se insere dentro do grande corpo literário da Índia antiga? Por que a tradição da escrita de comentários a essa obra? Que valor há para o mundo a aplicação de seus ensinamentos? Qual sua conclusão? Em entrevista com Jagadisha Dasa – estudioso de sânscrito e da Bhagavad-gita, um dos responsáveis pelo canal Vedanta 108 e palestrante regular da Bhagavad-gita em um templo de Krishna no Rio de Janeiro – damos conosco dentro do campo de batalha onde se desenrolou o célebre diálogo entre Krishna e Arjuna. Um cenário exótico para uma conversa sobre tópicos espirituais? Ao longo desta entrevista, descubra também o porquê do campo de batalha.
Volta ao Supremo: O que é a Bhagavad-gita? Quem é seu autor?
Jagadisha Dasa: A Bhagavad-gita é um dos livros mais importantes para a humanidade. Trata de vários assuntos, entre eles: o sujeito, a identidade fundamental do ser e sua relação com a causa primordial, Krishna. A Bhagavad-gita nos leva a uma viagem dentro de nós mesmos e amplia nossa visão de realidade, ressignificando diversos conceitos sob os quais somos orientados a agir. A Bhagavad-gita é parte do Mahabharata, um Purana com mais de cem mil versos escrito por Krishna Dvaipayana, também conhecido como Vyasa.
Volta ao Supremo: Pelo Mahabharata, sabemos que Krishna teve muitos momentos com Arjuna antes da batalha de Kurukshetra. Por que Krishna não falou a Bhagavad-gita a Seu amigo em um momento mais tranquilo, com mais disponibilidade de tempo, como em um ambiente bucólico?
Jagadisha Dasa: Notadamente, as Upanishads, em sua maioria, retratam cenários de florestas ou montanhas onde discípulos e mestres se encontravam para transmissão do conhecimento védico. A condição mostrada nas Upanishads era de renúncia, de retiro, fora da sociedade. Porém, na Bhagavad-gita, há um fato maravilhoso: diferentemente de uma floresta ou região montanhosa, o mestre Krishna e o discípulo Arjuna conversam no meio de um campo de batalha. Vários pontos podem ser percebidos nesse contexto: apesar de a guerra já ter começado com a sinalização dos búzios, esta é paralisada para que as instruções sejam dadas. Disso podemos entender que não há nada mais emergencial e insubstituível do que o autoconhecimento. Uma guerra pode esperar! Krishna paralisa uma batalha como se quisesse nos mostrar que, por mais que a vida aparentemente nos diga que não temos tempo e que haja circunstâncias aparentemente desfavoráveis, nada deve nos impedir ou nos fazer protelar a senda da espiritualidade.
Os búzios já tinham sido soados. Ainda assim, a guerra não teve início até o fim do diálogo entre Krishna e Arjuna.
É dito também que o cenário escolhido por Krishna teve o intento de favorecer a todos, sem distinção. A dramática situação do guerreiro Arjuna nos inspira a perceber que não há situação ou função onde o yoga não possa ser cultivado. Por mais duras que sejam as situações presentes em nossa vida, não podemos descambar para a lamentação ou nos sentirmos incapazes. Devemos nos manter no caminho do yoga.
Volta ao Supremo: A Bhagavad-gita, então, versa sobre yoga? O mesmo yoga que vemos tão frequentemente anunciado na atualidade?
Jagadisha Dasa: As palavras têm seus significados alterados ao longo do tempo. Infelizmente, yoga tem sido visto como algo meramente baseado em posturas ou técnicas de respiração, sendo uma prática totalmente dissociada do vedanta. A filosofia precisa permear a prática para que asanas e pranayamas não sejam um fim em si mesmo. Esses são instrumentos para o yoga, e yoga é samadhi, que significa ter um despertar para a realidade que eu sou, para a realidade do mundo e para a realidade de Ishvara, ou Krishna.
É comum o que se ensina na atualidade com o nome de yoga ser “uma prática totalmente dissociada do vedanta”.
O yoga ensinado na Bhagavad-gita nos leva além de qualquer postura, ou qualquer prática isolada, e nos faz perceber que tudo que é dharma, ou adequado, pode estar vinculado a uma realidade superior. Independente da ação, a postura interna de reconhecimento, de agradecimento e oferecimento prepara nossa mente para que possamos ir além do mero fruto de uma ação. Yoga é ter um sentido além do tempo, orientando nossas ações.
Volta ao Supremo: Por que a tradição de se comentar a Bhagavad-gita em vez de deixar que cada leitor tenha sua própria experiência com a obra? Qual o comentário mais lido na atualidade?
Jagadisha Dasa: Ao tentarmos entender a Bhagavad-gita sem compreender o contexto em que foi falada, criamos uma ruptura no ensinamento e comprometemos o seu propósito. Algumas pessoas dirão que o texto é a história de um guerreiro; outras dirão que é um livro sobre dharma; outras vão colocá-la apenas como um livro de cabeceira que é esporadicamente acessado para buscar inspiração. Deste modo, perde-se o fundamental do texto, que é o autoconhecimento e o exercício do relacionamento devotado para com Deus. Há o risco de tentarmos entender os conceitos de uma civilização com a de outra e chegarmos a uma compreensão errônea. A tradição de ensinamento enxerta os versos com a explicação de modo que o leitor ou estudante não se desvencilhe do objetivo. A.C. Bhaktivedanta Swami Prabhupada – autor do comentário mais famoso, com tradução para mais de sessenta línguas – instrui: estudar minuciosamente, aprender na companhia dos devotos e não interpretar ao bel prazer. Por isso, a tradição de ensinamento não está levando uma opinião, mas sim o texto tal como é.
Volta ao Supremo: Dizer “na companhia dos devotos” parece um discurso sectário.
Jagadisha Dasa: A palavra “devoto” não se restringe a “os Hare Krishnas” ou algo assim. Com uma compreensão limitada do termo, uma pessoa torna-se sectária negando a legitimidade de qualquer outro processo sincero. Devoto é aquele que tem devoção, que faz da sua vida uma expressão viva dos valores espirituais, que se manifestam em quaisquer circunstâncias. Sua atitude ainda é de gratidão para com Deus, mesmo que em situações adversas. É óbvio que, para adentrar na profundidade filosófica de um texto específico, temos de nos vincular a pessoas que vivam aquilo que está sendo ensinado, daí a recomendação de Prabhupada.
Volta ao Supremo: Uma vez que a maior parte dos leitores de Volta ao Supremo é brasileira, um país proeminentemente cristão, talvez exista a curiosidade de saber se existe algum paralelo entre a doutrina presente na Bhagavad-gita e a Bíblia. Qual sua opinião?
Jagadisha Dasa: Há diversos pontos de contato. A ética, a moral, o amor a Deus e ao próximo, as virtudes etc. Porém, a Bhagavad-gita aborda e aprofunda assuntos não tratados na Bíblia. Apesar de vários elementos em alinho entre os dois textos, há uma grande diferença. Enquanto a Bíblia aborda a virtude, o pecado e a salvação, a Bhagavad-gita é autoconhecimento, e as virtudes, a moralidade e a ética são apenas pré-requisitos para o que se pretende ensinar verdadeiramente: que a alma é perfeita, plena, imutável, qualitativamente igual a Deus e que liberação é um estado de reconhecimento da natureza real desse ser e do seu relacionamento com a causa primordial.
Volta ao Supremo: Tivemos a oportunidade de conhecer a biblioteca do Instituto Jaladuta, um dos mais importantes centros de estudo da Bhagavad-gita no Brasil, situado em Campina Grande, PR. Lá, deparamo-nos com uma obra que se propunha simplesmente a analisar todos os nomes com os quais Arjuna se refere a Krishna e vice-versa. Essa escolha de tratamento em cada contexto é realmente assim tão rica para render um livro?
Jagadisha Dasa: Definitivamente sim.
O texto da Bhagavad-gita é muito bem construído, em virtude do que é possível encontrar significados profundos em cada termo e em cada nome presentes na obra.
Os epítetos usados entre Krishna e Arjuna trazem muitos significados que ajudam a compreender o estado emocional de Krishna e Arjuna e o que um desejava do outro. Por exemplo, Arjuna chama Krishna de Govinda, ou “aquele que dá prazer às vacas e aos sentidos”, a fim de tentar convencê-lO de que aquele gigantesco combate não daria prazer a ninguém. Arjuna, em um contexto, é chamado de Kaunteya, fazendo alusão ao nome de sua mãe, Kunti, de modo que ele se lembre de sua linhagem e da responsabilidade incutida nisso. Um estudo minucioso e íntimo do sânscrito nos revela detalhes que nos conduzem a uma apreciação ainda maior do texto. Existem muitos outros detalhes interessantíssimos que vêm à tona quando há essa proximidade com a língua original.
Volta ao Supremo: Além desse nome “Govinda, “aquele que dá prazer às vacas”, também aparece na Bhagavad-gita, quando Krishna descreve os deveres da classe vaishya, o termo go-rakshya, “proteção às vacas”. Essa predileção pelas vacas e praticamente santificação das mesmas foi algo muito ridicularizado pelos ingleses na época da colonização da Índia e rendeu até mesmo a expressão em inglês “Holy Cow!” [Santa Vaca!] utilizada para exprimir surpresa. Por que a vaca assume esse status especial na literatura védica, um status tão exótico para nós ocidentais?
Jagadisha Dasa: Praticamente todos os rituais dos Vedas e muito da culinária da civilização védica tem o leite e seus derivados como componentes principais das preparações. Sem a vaca, nada disso seria possível. Por que, então, não mostrar gratidão para com esse maravilhoso ser? No supermercado, existe uma seção só para ela. Uma infinidade de outros alimentos é produzida a partir da vaca. Não se trata de idolatria, mas sim gratidão. E gratidão é uma das virtudes mais elevadas do ser humano e uma porta para diversas outras. Pelos serviços prestados, a vaca é reconhecida e protegida.
Volta ao Supremo: Falemos um pouco sobre a estrutura da Bhagavad-gita. Ela é dividida em 18 capítulos, subdivididos em três seções de 6 capítulos cada. De que maneira o tema de cada um desses 6 capítulos os agrupa?
Jagadisha Dasa: A primeira seção trata sobre karma-yoga ou “yoga da ação”. É um meio preparatório para a mente atenuar os impulsos dos apegos e aversões, um exercício da obtenção, desenvolvimento e práticas das virtudes necessárias para uma mente sem conflito. Karma-yoga é uma atitude por trás da ação – um estado de reconhecimento, gratidão, oferecimento e aceitação tanto no âmbito da ação quanto no âmbito do resultado. É a ponte entre duas margens: o real e o ideal.
A segunda seção é bhakti-yoga, ou “yoga da devoção”. É a percepção do vínculo amoroso entre o Ser Supremo e todos os outros seres que dEle são eternamente emanados. Muito mais do que liberação, que é um subproduto de bhakti, somos instruídos de forma a perceber que, além de todas as características do ser essencial – como eternidade, completude e felicidade absoluta –, existe o amor onidirecional. Bhakti-yoga é a expressão dessa natureza inerente.
A terceira seção fala de renúncia, ou jnana-yoga – não como um estilo de vida, mas sim como um estado interno. Krishna destrói todos os clichês construídos a partir do conceito de renúncia.
Volta ao Supremo: Na última seção, jnana-yoga, aparece com grande recorrência o assunto dos três gunas, termo traduzido, por vezes, como “modos da natureza material”. Qual a importância desse assunto? De que maneira ele se liga à questão da renúncia?
Jagadisha Dasa: Os capítulos relacionados a jnana-yoga começam no capítulo 13, que é chamado de “o campo e o conhecedor do campo”, sendo o conhecedor do campo aquele que percebe, e o campo, aquilo que é percebido. O capítulo 14 entra nas minúcias do campo descrevendo suas expressões básicas, chamadas sattva, rajas e tamas, que são forças que regem a matéria.
Uma retratação dos três modos da natureza material controlando as atividades das almas condicionadas. Krishna é retratado acima por ser transcendental à influência dos mesmos.
Assim, além de compreender a diferença entre campo (matéria) e conhecedor do campo (alma), é preciso entender também as diferentes transformações pelas quais o corpo, a mente e todos os demais objetos do universo passam. Através desses capítulos, podemos compreender as contingências do asat, “o temporário”, e saber lidar com cada uma delas. A renúncia (vairagya) advém sempre da compreensão (viveka) das coisas como são.
Volta ao Supremo: Pode-se dizer que algum dos 18 capítulos é especialmente importante?
Jagadisha Dasa: O capítulo 9 é chamado de raja vidya, “o rei do conhecimento”, e é realmente muito belo e inspirador, mostrando em detalhes que Ishvara, ou Krishna, é tudo.
Volta ao Supremo: No princípio da entrevista, você disse que a Bhagavad-gita é ligada ao Mahabharata, sendo o primeiro alguns capítulos da grande epopeia. A Bhagavad-gita tem alguma relação também com o restante da literatura védica?
Jagadisha Dasa: A Bhagavad-gita é a essência de toda a literatura védica. Compreendendo a Bhagavad-gita tal como é, todos os outros textos podem ser entendidos. É uma leitura que nunca pode ser abandonada, pois se mantém nova a cada reflexão, e cada reflexão expande ainda mais nossa percepção. Cantar a Bhagavad-gita conhecendo o seu significado nos leva a uma apreciação cada vez maior da pessoa que Krishna é.
Escultura de bronze de Krishna e Arjuna em Kurukshetra, Índia, onde o Bhagavad-gita foi falado.
Volta ao Supremo: Em 1974, era lançado o disco de maior sucesso de Raul Seixas, de nome Gita, o qual trazia entre suas faixas a música com o nome do disco, composta por Raul Seixas e Paulo Coelho. Essa música é basicamente uma versão do capítulo 10 da Bhagavad-gita, um dos capítulos mais poéticos e queridos da obra. Qual é a temática e a essência desse capítulo?
Jagadisha Dasa: No verso 17 desse mesmo capítulo, Arjuna pergunta como poderia sempre lembrar-se de Krishna e como deveria pensar nEle. Sua preocupação era esquecer os ensinamentos transmitidos quando estivesse ocupado nos afazeres do dia-a-dia. Naquele momento, Krishna estava presente, mas e depois? Administrar e expandir o reino, gerar progênie, lidar com diferentes situações – tudo isso, ao longo do tempo, poderia diluir a memória das instruções. Assim, Arjuna pergunta em quais coisas Krishna poderia ser lembrado. O que se sucede é o elenco de elementos cujas características principais nos remetem à grandiosidade desse Absoluto.
Volta ao Supremo: Sendo bem pragmáticos, de que maneira a Bhagavad-gita pode auxiliar nos grandes problemas do mundo, como depressão, desigualdade social, fome, violência contra a mulher e similares?
Jagadisha Dasa: A causa de todo o sofrimento é a ilusão que se desdobra da ignorância acerca do significado da identidade. Quando nos situamos na nossa natureza real, tudo se torna mais claro. Nossa forma de agir, pensar e decidir orbita na ideia que temos sobre a palavra “eu”. Se o eu significa o corpo, tudo se torna confuso, dual e incompleto. Percebendo que somos uma entidade além do corpo e que há um destinatário supremo para nossos esforços, e que Ele é o amigo de todos, a paz se assenta. Para muitos, isso não é novidade, e, para outros, pode soar como uma resposta pronta, mas o fato é que, contemplando essa realidade, nossa forma de lidar com as pessoas e demais seres, bem como com as circunstâncias em geral, é alinhada com o propósito da vida.
Volta ao Supremo: Estamos nos aproximando do fim de nossa entrevista. Uma pergunta importante: Qual é, afinal, a grande conclusão da Bhagavad-gita?
Jagadisha Dasa: A conclusão da Bhagavad-gita é: por compreendermos nossa natureza real e a natureza da nossa relação com o Absoluto, causa primordial de todas as coisas, devemos agir conforme nossa natureza, vinculados devotadamente a Ele.
Volta ao Supremo: Quem, com esta entrevista, tenha se sentido motivado a estudar a Bhagavad-gita, como pode proceder?
Jagadisha Dasa: É recomendado que se estude através de uma tradição de ensinamento que é explicada por um professor ou mestre de vedanta. A última coisa que se deve fazer é estudar por conta própria, pois vedanta não é para autodidatas, mas sim um conhecimento transmitido de acordo com uma corrente de mestres e discípulos a fim de manter a integridade do propósito do texto.
Temos um canal no Youtube com vídeo-aulas gratuitas da Bhagavad-gita, analisando verso a verso. No mesmo canal, Vedanta 108, há ainda outros vídeos variados com os ensinamentos de Krishna encontrados em outras obras, como o Bhagavata Purana. É um canal com ensinamentos apresentados com seriedade e com imagem, áudio e edição profissionais. Pode-se acessar o canal através deste link: https://www.youtube.com/user/ovedanta108. Se eu puder ajudar tirando dúvidas ou orientado em algo, disponibilizo também meu e-mail: jagadishdaasa@hotmail.com.
Volta ao Supremo: Gostaria de colocar mais algumas palavras?
Jagadisha Dasa: Queria deixar minhas reverências a todos que têm apoiado e ajudado a divulgar o Vedanta 108. Reverências a Srila Prabhupada; a meu mestre espiritual, Purushatraya Swami, e a meu mestre de sânscrito, Mukunda Dasa.
Entrevista conduzida por Bhagavan Dasa em nome da revista Volta ao Supremo. Todo o conteúdo das publicações de Volta ao Supremo é de inteira responsabilidade de seus respectivos autores, tanto o conteúdo textual como de imagens.
.
Se gostou deste material, também gostará destes: Analisando a Estrutura do Bhagavad-gita, O Bhagavad-gita Além da Especulação, As Três Forças do Universo, O Gita Condensado, Críticas ao Bhagavad-gita Como Ele É, As Naturezas Divina e Demoníaca, Guna-traya: Os Três Modos da Natureza Material, O Bhagavad-gita Como Ele É, Gītādhyānam: Meditação no Bhagavad-gītā, A Opulência do Absoluto, Arjuna Rende-Se ao Senhor, Guerra, Paz e Rendição a Deus no Bhagavad-gita.
.
Se gostou deste material, também gostará do conteúdo destas obras:
Comente