Coringa: Um Filme sobre Soldados Falíveis

Bhagavan Dasa

Spoiler: Este filme é sobre a vida de cada um de nós.

Este artigo contém revelações sobre o roteiro do filme. Coringa é um filme com muitas camadas: moral, social, existencial, psicológica… Acima de tudo, o que o filme comunicou para mim foi a falibilidade dos soldados com que contamos para nosso bem-estar, segurança e propósito na vida.

Arthur Fleck, o nome real do Coringa no longa-metragem, é alguém que não recebe amparo de ninguém que o deveria amparar: sua mãe não pôde lhe dar uma infância segura, seu pai não lhe deu carinho, seu ídolo da comédia o ridiculariza, seu emprego é perdido, arruaceiros o espancam na rua, sua psiquiatra não se importa o bastante, e o governo corta verbas que iam para suas consultas e acesso a medicamentos…

Segundo as escrituras védicas, todos esses refúgios que falham com Coringa tinham, sim, a obrigação de ampará-lo:

Pais devem empreender todos os meios necessários para libertar o filho de todo sofrimento, não apenas nesta vida, mas de modo que ele nunca mais tenha que renascer e passar pelos sofrimentos inerentes da vida neste mundo: “Quem não pode libertar seus dependentes do caminho de repetidos nascimentos e mortes jamais deve se tornar pai ou […] mãe.” (Srimad-Bhagavatam 5.5.18)

Aqueles que se tornam ídolos por serem grandes em fama, riqueza ou afins, devem ter uma conduta superior e exemplar: “Apenas para educar o povo em geral, deves executar teu trabalho. Seja qual for a ação executada por um homem grande, os homens comuns seguem e o mundo inteiro procura imitar todos os padrões que ele estabelece através de seus atos exemplares.” (Bhagavad-gita 3.20-21)

Manter as ruas pacíficas para os cidadãos honestos é dever do governo: “Se um rei não monta em sua vitoriosa quadriga coberta de joias, cuja mera presença ameaça os criminosos, se não produz furiosos sons com a vibração de seu arco e se não vaga pelo mundo como o Sol brilhante, liderando um imenso exército cuja marcha faz o globo da Terra tremer, todas as leis morais criadas pelo próprio Senhor serão violadas por canalhas desprezíveis.” (Srimad-Bhagavatam 3.21.52-54)

Igualmente dever do governo é fornecer segurança social e cuidados para doentes e outras pessoas em risco social: “Os fracos e oprimidos, os cegos, os surdos, os aleijados, os órfãos, os idosos, as viúvas, os doentes e os aflitos devem receber alimento, vestes, medicamentos, abrigo e demais necessidades.” (Mahabharata 12.86.24) “A força dos oprimidos e desolados está no rei.” (Ramayana 7.59) “Da mesma maneira que um pai ajuda seu filho a superar uma crise, o rei deve livrar das dificuldades os seus cidadãos.” (Srimad-Bhagavatam 11.17.45)

A psiquiatra ouve com pouco interesse seu paciente.

Assim, o estresse do Coringa encontra justificação – ou, pelo menos, origem traçável. Todas as suas necessidades e desejos de afeto e previsibilidade se frustram. Krishna diz na Bhagavad-gita (2.63) que a consequência dessa frustração é a ira (kama esa krodha esa). Essa ira progride para diferentes formas de violências concretas, segundo diversos fatores. Pessoas que têm pouca liberdade para serem violentas externamente, podem preferir autoviolência na forma de depressão, abuso de remédios ou culpar a si mesma, enquanto pessoas com mais liberdade para extravasar a raiva, podem adotar violência doméstica, abuso psicológico contra empregados e atitudes dessa categoria. Outras formas de violência, é claro, incluem aquelas percorridas por Coringa: desejo de suicídio, crimes de vingança, e busca por atenção a qualquer preço.

Soldados Falíveis

Essas mesmas escrituras que dizem os deveres da família, de pessoas influentes e do governo, fazem um alerta: tratam-se de soldados falíveis. “Pessoas destituída de atma-tattva não indagam acerca dos problemas da vida, estando excessivamente apegadas aos soldados falíveis, tais como o corpo, os filhos, a esposa e assim por diante. Embora tenham experiência o bastante, continuam não vendo sua inevitável destruição.” (Srimad-Bhagavatam 2.1.4)

Carentes de atma-tattva, isto é, carentes de conhecimento referente às coisas espirituais e eternas, nós nos esquecemos que os soldados que lutam por nós são falíveis e nos apegamos a eles “excessivamente”. O governo, psiquiatras, família etc. podem ser soldados desertores no meio do combate em nosso favor, ou, mesmo caso lutem até a morte, são meros soldados frágeis e incapazes de feitos extraordinários, como nos dar o amor que ansiamos, saúde imperdível e um reino sem ansiedades.

Será que depositamos toda a nossa esperança nesses soldados por falta de experiência? Fazemos isso porque não os vimos falhar o bastante? Será que temos esperança porque não estudamos história o bastante para conhecermos o que foram e o que são os governos comunistas, capitalistas, monarquistas e teocráticos? Será que não ouvimos o cancioneiro popular o suficiente para sabermos que amores não atendem nossas expectativas? Será que não assistimos novelas o bastante para conhecermos dramas familiares? O verso do Srimad-Bhagavatam diz que não é isso: “Mesmo tendo experiência o bastante…” Se mesmo com experiência suficiente depositamos todas as nossas fichas nisso, o que pode livrar alguém dessa vã esperança? O verso responde: Atma-tattva, conhecimento espiritual.

O comediante e ídolo de Arthur o decepciona.

Diferente dos soldados falíveis do corpo, parentes etc., Deus é chamado de Acyuta, “infalível”, e também é chamado de Akincana-gocara, “o abrigo dos desabrigados”. Quando tudo mais falhou com a gente, nosso único recurso e esperança é o que é espiritual. Existem três coisas espirituais: você como espírito imortal, Deus como o Espírito imortal supremo, e sua relação com Deus. Quanto mais nos atrelarmos a essas três coisas, mais seguros estaremos diante da derrota inevitável dos demais soldados.

Tudo Tem que Ir

No começo do filme, Arthur Fleck, o futuro Coringa, trabalha como palhaço anunciando uma queima de estoque de uma loja que está para fechar por falência. Na placa que ele segura, lemos: “Everything Must go”, que, para o português, podemos traduzir como “Tudo Tem que Ir” ou “Tudo Certamente Irá”, pela pluralidade de significados da palavra “must”. A placa, é claro, fala dos produtos que têm que ser vendidos ou, no entusiasmo do anunciante, certamente serão vendidos agora divulgados em promoção.

Arthur Fleck anuncia a liquidação.

O diretor do filme, porém, parece nos dizer que essa placa não é sobre os produtos, mas sobre a própria vida, que também sempre entra em falência e jogará isso em nossa cara. Arruaceiros tomam a placa de Arthur e quebram a mesma contra o seu rosto. “Tudo tem que ir”, como diz a placa, é a vida de Coringa, onde tudo se perde cena após cena. Mas também é a nossa vida, mesmo que não sejamos tão desgraçados quanto o vilão de Gotham. Com a morte, com a velhice, com doenças, com recessões econômicas ou por qualquer outro meio, tudo que temos também irá. E quando tudo vai, o que nos resta? Se tudo que tínhamos era o apego e as expectativas em relação a tudo que se vai, sobrarão a raiva, o ódio, a violência… Seremos o próximo Coringa, odiando a nossa própria vida, ou considerando que todos estão loucos e são péssimos, e dignos do nosso castigo.

Mas! Se temos algo que não pode ser roubado – como disse Jesus, que não pode ser alcançado por ladrões ou traças –, tesouros espirituais, sobrará algo quando tudo que tinha que ir for, quando caírem todos os soldados de derrota inevitável. Então, mesmo em meio à dor e ao medo, isso poderá fazer toda a diferença. Acumularmos posses espirituais é fundamental se queremos alguma segurança verdadeira. Essa é, na verdade, a única maneira que você tem para não deixar a vida fazer você de palhaço.

Bhagavan Dasa é editor-chefe da BBT Brasil e coordenador pedagógico do Instituto Bhaktivedanta de Estudos Védicos. Em 2005, cursou Bhakti-shastri no Instituto Jaladuta. Hoje reside no Ashram Vrajabhumi com esposa e filhos.

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