Jatayu: Vitorioso na Derrota

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Chaitanya-charana Dasa

A devoção transforma uma derrota material em uma vitória espiritualmente libertadora.

Ninguém gosta de perder. Quando percebemos que estamos perdendo, muitas vezes tentamos nos conectar com alguém mais forte para sairmos vitoriosos. Quando as pessoas começam a adorar a Deus, elas esperam que Ele as ajude a vencer suas batalhas. E as escrituras do mundo contêm narrativas célebres de como os devotos venceram as dificuldades hercúleas pela graça divina.

Ainda assim, as escrituras também trazem histórias alternativas,nas quais os devotos são derrotados. Como tais narrativas devem ser entendidas? Expandindo nossas concepções além do material para o espiritual.

Tais histórias nos obrigam a reconhecer como nossa própria existência e a proteção de Deus se estendem além do nível material da realidade. Se esperamos que Deus garanta nosso constante sucesso neste nível em que estamos, nossa fé será abalada, até mesmo despedaçada, pelas reviravoltas mundanas. Mais importante ainda, vamos nos privar das muitas bênçãos eternas disponíveis no nível espiritual da realidade.

Condenado Mas Determinado

Para entender como a visão espiritual pode mudar nossa percepção de reviravoltas, vejamos a história do abutre Jatayu no épico Ramayana. Ele é mais conhecido por ter alcançado o martírio enquanto tentava impedir Ravana de raptar Sita. Ravana, esse demônio lascivo, havia conspirado para raptar Sita, afastando dela os heróis que a protegiam. Enquanto ele levava Sita pelas vias aéreas em sua carruagem mística, Sita chamou desesperadamente por ajuda. Embora Rama e Lakshmana não conseguissem ouvir, estando muito longe, alguém mais ouviu e agiu.

Sita viu o abutre Jatayu surgindo de uma árvore. Esse pássaro idoso era amigo de Dasharatha, o falecido sogro de Sita, e estava residindo na floresta de Dandaka. Quando Rama, Sita e Lakshmana chegaram a essa floresta, Jatayu os recebeu com afeto paternal. Ele havia garantido a Rama que ele ajudaria a proteger Sita na floresta perigosa e infestada de demônios. Fiel à sua palavra, Jatayu estava agora voando para resgatá-la.

Sendo esposa de um guerreiro, Sita rapidamente avaliou as forças entre Ravana e Jatayu. Ela percebeu que o pássaro envelhecido não seria um adversário páreo para o demônio mais jovem e mais forte. Então, ela o chamou e pediu-lhe para informar Rama sobre seu sequestro e alertando-o para não intervir, a fim de que Ravana não o matasse.

Mas Jatayu achou impossível atender Sita. Como ele poderia viver consigo mesmo se não fizesse nada para impedir o sequestro dela? Apesar de saber que seria um grande esforço lutar contra Ravana, ele se sentiu determinado a protegê-la, fazendo tudo o que estava ao seu alcance. Decididamente, ele voou ao lado de Ravana, repreendendo sua irreligiosidade em raptar uma mulher casada. Como era de se esperar, esse discurso sobre virtude não impediu o demônio infame. Jatayu prontamente mudou de tática e o desafiou para uma luta. Quando o demônio continuou a voar, Jatayu o ofendeu chamando-o de covarde, porque havia sequestrado Sita pelas costas de Rama. Quando continuou sem resposta, Jatayu recorreu à única opção que restava para ele: atacar.

Ele perfurou os braços de Ravana com suas garras, pegou seus cabelos nos bicos e o puxou. Ravana rugiu furioso, sentindo-se humilhado ao ser assim atacado por um mero abutre –e o pior, humilhado na frente da mulher que ele queria impressionar e ter como sua nova rainha principal. Inicialmente, ele havia negligenciado o abutre, pensando que ele era um intruso indefeso. Mas quando Jatayu o atacou tão ferozmente, ele decidiu lutar e matá-lo.

Ravana logo descobriu que Jatayu, longe de ser uma presa fácil, era um lutador experiente. O plano de Jatayu era primeiro imobilizar o demônio, depois atacá-lo e matá-lo. Se Ravana conseguisse voar em sua carruagem, Jatayu não teria nenhuma chance de salvar Sita. Por isso, ele atacou com força e matou as mulas que moviam a carruagem de Ravana. Com apenas um golpe de seu bico, ele derrubou o cocheiro. Então, com repetidos golpes, ele quebrou a carruagem.

Enquanto isso, Ravana contra-atacava Jatayu com flechas descarregadas de seu gigantesco arco. Contudo, o pássaro se esquivou das flechas e continuou seu ataque. Quando sua carruagem caiu aos pedaços, Ravana foi forçado a descer ao chão, segurando Sita em uma mão e seu arco na outra. Do chão, o demônio enfurecido atirou tantas flechas em Jatayu que elas o cobriram como um ninho cobrindo um pássaro. Apesar de ferido, Jatayu continuou atacando Ravana, por fim quebrando seu arco. Mas Ravana rapidamente encordoou mais um arco e contra-atacou.

Evitando algumas flechas e tolerando a dor causada por outras, Jatayu investiu contra Ravana. Com uma força surpreendente, ele arrancou um dos braços de Ravana. Todavia, para sua perplexidade, esse braço cresceu de volta imediatamente. Ravana tinha recebido uma bênção de Brahma que sempre que seus membros fossem cortados, eles voltariam a crescer. Embora Jatayu desmembrasse Ravana repetidamente, os membros cortados voltavam a crescer em poucos instantes.

Com o tempo, Jatayu começou a se cansar e seus movimentos se tornaram mais lentos. Logo, Ravana, ao mesmo tempo em que se defendia do ataque do pássaro, percebeu a sua oportunidade. Enquanto o pássaro voava para longe dele, Ravana se moveu com a velocidade de um relâmpago, usando sua espada para arrancar uma asa. Em pouco tempo, ele também havia arrancado a outra asa. Sangrando intensamente, Jatayu caiu no chão. Chorando desesperançosa, Sita, que havia se afastado da terrível luta, correu em direção a Jatayu para confortá-lo. Com um rugido vitorioso, Ravana a arrastou pelos cabelos. Com seu poder místico, ele se levantou no céu e voou para longe, deixando Jatayu contorcendo-se em uma agonia desamparada.

O Último Serviço com o Último Suspiro

Embora mortalmente ferido, Jatayu manteve sua vida com muita coragem. Sita lhe pediu para informar Rama sobre seu sequestro. Ele havia tentado fazer mais, porém falhou. No entanto, ele estava determinado a atender o pedido de Sita. Apesar de estar sentindo muita dor, manteve-se paciente, chamando o nome de Rama e encontrando consolo naquele canto sagrado.

Enquanto isso, Rama, junto com Lakshmana, estava procurando freneticamente por Sita. No devido tempo, Ele chegou a uma clareira na floresta que tinha sido, evidentemente, a arena de uma batalha brutal. Com o arco erguido, Ele olhou ao redor obstinadamente, temendo que Sita pudesse ter encontrado seu fim naquele lugar. Notando uma criatura deitada no chão por perto, Rama pensou que era o demoníaco raptor de Sita em forma de ave e se preparou para atirar com Seu arco. Jatayu estava tão mutilado que Rama não conseguiu reconhecê-lo.

Que teste de fé deve ter sido para Jatayu quando ele viu a flecha de Rama apontada para ele – a mesma pessoa por quem ele havia arriscado sua vida estava prestes a tirar-lhe a vida! No entanto, ele continuou fielmente cantando o nome de Rama, com a voz fraca devido à sua condição. Mas Rama ouviu aquele canto tênue. Intrigado, Ele baixou Seu arco e observou atentamente. Quando reconheceu o pássaro como sendo Jatayu, correu em sua direção e o abraçou. Com seus últimos suspiros, Jatayu explicou o que havia acontecido. Tendo realizado seu último serviço de informar Rama sobre o sequestro de Sita, ele ficou em silêncio para sempre.

Aflito, Rama realizou pessoalmente os últimos ritos para Jatayu – um ato de graça divina sem precedentes, que superou as convenções sociais e garantiu o supremo sucesso da vida de Jatayu.

Sorte em Meio ao Revés

A sabedoria espiritual nos ajuda a compreender que somos almas indestrutíveis em uma jornada transmigratória de múltiplas vidas em direção à libertação eterna: uma vida de amor espiritual com Deus. Todos nós estamos travando uma guerra contra as ilusões da existência mundana que nos seduzem com prazeres temporários e nos privam da felicidade eterna.

Nesta guerra, mais importante do que conseguir evitar a morte – uma fuga que, de qualquer forma, não pode continuar para sempre – é conseguir se lembrar de Deus, a mais alta realidade além do mundo da morte. A Bhagavad-gita (8.5-6) explica que nossa mentalidade na morte determina nosso destino post mortem. Se nossa consciência está fixada em Deus no momento do fim da vida, nós alcançamos Sua morada eterna. Portanto, recordar-se de Deus na hora da morte é a coroação do sucesso da vida. Esse êxito proporciona uma recompensa muito maior do que a recompensa de muitas vitórias nas várias batalhas da vida, a qual, de qualquer forma, será desfeita com a derrota final na hora da morte. Embora Jatayu tenha perdido sua batalha contra Ravana, ele alcançou o sucesso que traz a completa satisfação: morrer na presença de Rama, absorto em sua lembrança.

E ele ter alcançado um sucesso tão notável enquanto estava em um corpo de abutre é algo ainda mais notável. Na tradição védica, os abutres frequentemente simbolizam a ignorância, pois se alimentam de cadáveres, que são considerados extremamente impuros.

Mas Jatayu, apesar de estar em semelhante corpo de abutre, alcançou a suprema fortuna de morrer na presença do Senhor. Na tradição de bhakti, Bhisma, a grandeza da dinastia Kuru,é celebrado por ter alcançado a morte ideal porque Krishna estava bem ao seu lado durante seus momentos finais. Muito antes de Bhisma, Jatayu também alcançou uma partida ideal semelhante, falecendo não apenas na presença do Senhor, mas também em seu colo.

E a sorte de Jatayu não terminou aí. Depois que ele partiu, Rama, realizando seus últimos ritos, ofereceu-lhe a mesma honra que um filho oferece a seu pai.

O Âmbito do Gambito

Os estrategistas de guerra sabem que aceitar a derrota em uma pequena batalha para ganhar uma grande batalha não é perda. A visão espiritual nos ajuda a ver a derrota no nível físico como perder uma batalha em uma guerra. Mas se essa derrota estimula o aumento da nossa lembrança de Deus, então esse aumento da lembrança é um ganho espiritual significativo. E se nos inspira a nos lembrarmos de Krishna no momento da morte, então perder a batalha da sobrevivência nesta vida para ganhar a guerra por alcançar a vida eterna é um gambito vencedor.

Naturalmente, é improvável que nos peçam para fazer tais sacrifícios extremos, mas quaisquer que sejam os desafios que precisamos enfrentar ou as perdas que precisamos superar em nosso serviço ao Senhor, podemos ter certeza de que, no final, seremos os ganhadores supremos.

Entretanto, se as vitórias no nível físico nos fazem acreditar que podemos ser bem-sucedidos e felizes neste mundo, e que não precisamos elevar nossa consciência ao nível espiritual, então a ilusão mundana marcou uma grande vitória sobre nós, pois agora estamos orgulhosamente situados em suas garras. Embora possamos ter vencido a batalha neste mundo, sofremos mais uma derrota em nossa guerra de múltiplas vidas contra a ilusão.

Em contraste, Jatayu perdeu a batalha contra Ravana, mas ganhou a guerra contra a ilusão mundana. Ele foi vitorioso na derrota.

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