O Problema Purânico

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Devamrita Swami

A proposição dos simpatizantes védicos, como Srila Prabhupada, de que o conhecimento purânico se origina no passado védico é aceita por muitos acadêmicos, mas que nem sempre se manifestam ou cujas opiniões não chegam ao público não especializado.

Nossa primeira dificuldade para lidar com os Puranas é o tamanho descomunal da literatura nessa categoria. Os vaishnavas (devotos de Vishnu), que formam a maior escola védica, aceitam o Bhagavata Purana como o texto purânico preeminente. Apesar disso, é preciso dizer que o volume de textos que atendem pelo nome de Purana é exorbitante. Seguidores da sabedoria védica, em geral, aceitam dezoito Puranas como os principais. Todavia, há muitíssimos Puranas, tidos como inferiores ou “de menor autoridade”.

Espanto diante da quantidade de materiais purânicos é algo muito antigo. “Para falar sobre essa enorme literatura com alguma autoridade, é preciso uma vida de estudo, mas, até então, ninguém [nenhum acadêmico] dedicou sua vida a isso”, disse o pesquisador Haraprasad Shastri em 1928.[1] Mais tarde, em 1953, V. Raghavan disse: “Os Puranas formam a maior parte dos escritos sânscritos – um corpo literário absolutamente volumoso e espetacular”.[2]

Pesquisando a imensa expansão de textos principais e textos menores, Raghavan concluiu que “reuni-los é uma tarefa impossível”.[3]

Voltemos um pouco mais no passado, no começo do século XIX, quando a antiguidade indiana empolgava os acadêmicos europeus. Naquele tempo, os Puranas chamavam a atenção. Os acadêmicos Vans Kennedy e H. H. Wilson destacaram-se no estudo dos mesmos. Depois de meio século, no entanto, Puranas deixaram os holofotes acadêmicos. Uma forte razão para isso pode ter sido que Wilson, o indólogo que mais se dedicara à literatura purânica, descontinuou seus esforços por julgar que a pesquisa purânica não valia a pena. “Não é muito provável que muitos deles sejam publicados ou traduzidos”, anunciou, com seu veredito negativo ditando o futuro.[4]

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H.H. Wilson, pioneiro nos estudos acadêmicos dos Puranas.

O entusiasmo de Wilson pela pesquisa purânica minguara graças à sua conjetura de que os Puranas seriam posteriores ao cenário védico. Seu contemporâneo, Vans Kennedy, defendendo os Puranas como originários de antiguidade desconhecida, discordou calorosamente:

Estou bem ciente de que a composição recente das obras sânscritas, e particularmente dos Puranas, é uma opinião prevalecente. Porém, como nunca me deparei com essa opinião em nenhuma outra forma além de declarações cruas e sem o suporte nem mesmo do menor argumento ou da menor prova, é-me completamente impossível compreender com base em que essa opinião poderia ter-se formado.[5]

Embora Kennedy fosse um “peso-pesado”, Wilson sentou-se na cadeira imperial Boden de sânscrito na Universidade Oxford. Além disso, o veredito de Wilson foi o mais obsequioso na subjugação da Índia bárbara. Sutilmente, a Coroa tinha que desarraigar dos indianos qualquer orgulho de um passado perdido e glorioso. Acadêmicos britânicos assumiram a frente dessa cruzada.

Mais uma vez, devemos nos lembrar de que indólogos contemporâneos recuam diante de qualquer sugestão de que seus fundadores, como H. H. Wilson, perpetuam seus propósitos acadêmicos também extensamente no século XX. Contudo, o julgamento de Wilson em relação aos Puranas fez exatamente isso. Vans Kennedy, embora destacado à época, perdeu-se no tempo, e o édito de Wilson foi endeusado. Sua taxação dos Puranas como posteriores e sua pronunciação dos mesmos como não originais dissuadiu efetivamente os primeiros indólogos a considerarem seriamente os Puranas. Afinal, embora o romantismo liderado pela Alemanha houvesse se posto no horizonte e nascesse o academicismo colonial britânico, os acadêmicos ainda conseguiam reunir um entusiasmo crucial apenas por coisas tidas como antigas ou originais.[6]

O padrão industrial atual para os estudos acadêmicos purânicos é o trabalho do indólogo alemão Ludo Rocher. Sua visão geral The Puranas aponta outra razão para o desvanecer antigo da pesquisa dos Puranas. O necessário investimento de trabalho árduo para adentrar os Puranas provavelmente desencorajou acadêmicos. Sem dúvidas, a pesquisa purânica é deveras penosa:

Uma razão para a falta de interesse nesses livros durante o período inicial, além dos Puranas serem textos “posteriores”, pode ter sido a incapacidade de os acadêmicos lidarem com a quantia esmagadora de materiais contidos neles. É característica da pesquisa purânica do século XX ela começar buscando por maneiras e métodos para controlar essa quantidade maciça de materiais.[7]

A hesitação decorrente do incomensurável tamanho dos Puranas combinou-se com o estigma da “recente produção” afixada por Wilson. O resultado foi o esmorecimento da pesquisa purânica. Ademais, é certo que os conteúdos dos Puranas chocaram muitos acadêmicos, quer da Europa, quer da Índia modernizada. Theodore Goldstücker, um pesquisador destacado em seu tempo, rebelou-se contra os Puranas em seu Inspired Writings of Hinduism: “Quando, mediante a classe sacerdotal e mediante a ignorância, uma nação se perde a ponto de considerar esses textos como divinamente inspirados, só há uma conclusão a se chegar: ela chegou ao momento decisivo de seu destino”.[8] No prestigioso jornal Calcutta Review, um contribuinte que escolheu permanecer anônimo declarou: “De todas as falsas religiões, aquela dos Puranas é talvez a mais monstruosa em seus absurdos – um estupendo memorial para a fácil credulidade de uma raça imbecil”.[9]

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A natureza exótica das histórias purânicas e a grande extensão dessas obras foram alguns dos motivos que desencorajaram os pesquisadores acadêmicos.

Compreensivelmente, a pletora de exoticidades nos Puranas, rompendo com o paradigma ocidental, não favorece a aceitação ocidental, quer antigamente, quer na atualidade. Embora os dias dos primeiros indólogos tenham há muito ficado para trás, a opinião ocidental predominante continua a recuar educadamente diante dos conteúdos purânicos.

Outro fator a contribuir para o aviltamento dos Puranas são as campanhas negativas promovidas por alguns pensadores hindus próximo do começo do século XX. Líderes hindus como Devendranath Tagore e Dayananda Sarasvati buscaram afastar dos Puranas os seus compatriotas a fim de focarem exclusivamente nos quatro Vedas e nas Upanishads. Julgaram que o que construíram como “os textos védicos mais genéricos e serenos” se revelaria uma base mais efetiva para a unidade hindu. Os Puranas, com seu aparente vasto estoque de diversas perplexidades, eram vistos como uma barreira à unidade política e ao ecumenismo. Hoje, a seita conhecida como Arya Samaj é conhecida por descreditar abertamente os Puranas, afirmando que não são textos de autoridade. Também rejeita a autoria tradicionalmente atribuída a Vyasa. A Sociedade Teosófica, de origem ocidental e tendo por base A Doutrina Secreta, de Madame Blavatsky, propaga uma postura reservada em relação aos Puranas, nem os aceitando, nem os rejeitando.

Quando examinamos as relações que muitos acadêmicos ocidentais veem entre os Puranas, os quatro Vedas e as Upanishads, caímos em mares revoltos. Como mencionado anteriormente neste livro, os preceptores védicos ortodoxos veem todas as facetas do corpo védico de conhecimento como existentes juntas e em um todo harmonioso. As principais escolas védicas não tentam despejar os Puranas da tradição védica. A atitude mais amplamente publicada na academia ocidental, entretanto, erige uma muralha de pedra entre o que é considerado “a literatura védica original” e “as criações purânicas posteriores”. Autores de livros não especializados difundiram essa noção entre o público em geral. Consequentemente, até mesmo nas bibliotecas universitárias, isso é tudo o que estudantes e professores encontrarão.

Mais uma vez, infelizmente, podemos traçar uma ideia popular na atualidade aos pais fundadores da indologia no século XIX. Após a deposição dos Puranas por parte de H. H. Wilson, Max Müller o seguiu, fechando a porta e trancando-a. Com autoconfiança, pronunciou:

Se é inseguro usar os poemas épicos [Mahabharata e Ramayana] como autoridades para o período védico, devemos compreender prontamente que a mesma objeção se aplica, com ainda maior força, aos Puranas. Apesar de, até o momento, apenas um dos Puranas ter sido publicado integralmente, já se sabe o bastante acerca do seu caráter – em parte pela edição do Bhagavata Purana de Burnouf, em parte pelos excertos que Wilson forneceu de outros Puranas – para justificar nosso descrédito sobre eles quanto a serem referências para o período primitivo da literatura védica.[10]

Goldstücker decidiu ser mais proativo. Ele convocou uma grande campanha para “provar ao povo que sua verdadeira fé não se fundamenta nem na porção brahmana dos Vedas, nem nos Puranas, mas, sim, nos hinos do Rig-veda”.[11] Desenvolveu sua ideia em seu Sanskrit and Culture:

Mesmo uma comparação superficial dos conteúdos dos atuais Puranas com a erudição antiga da religião, da filosofia e da ciência hindus convencerá qualquer um de que a imagem de religião e de vida revelada por eles é uma caricatura do que foi oferecido pelas obras védicas, e que foi desenhada pela classe sacerdotal inescrupulosa e interessada em submeter ao seu domínio a mentalidade popular no uso dos meios que tinham para esse fim.[12]

O trabalho de Ludo Rocher reconhece que o consenso geral dos intelectuais védicos sustenta firmemente a fidelidade dos Puranas e recusa divorciá-los de alguma maneira dos Vedas.[13] Para o grande alívio dos adeptos atuais dos Vedas, Rocher foi capaz de ver que consideram os Puranas, no mínimo, continuações e desenvolvimentos naturais dos quatro Vedas. Ainda mais intimamente, no entanto, os Puranas são celebrados como as companhias essenciais para a compreensão correta dos quatro Vedas. Porque os Puranas manifestam e demonstram a verdade védica, o aspirante a devoto védico é instruído a se refugiar neles. Dos tempos védicos em diante, existem como uma literatura companheira.

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A proposição dos simpatizantes védicos, como Srila Prabhupada, de que o conhecimento purânico se origina no passado védico é aceita por muitos acadêmicos, mas que nem sempre se manifestam ou cujas opiniões não chegam ao público não especializado.

Os simpatizantes védicos não são os únicos a defenderem que o conhecimento purânico se origina nas profundezas insondadas do passado védico. O estudo de Rocher nos surpreende ao apontar que muitos acadêmicos modernos acreditam que, perdido na antiguidade, existiu um corpo original e singular de conhecimento purânico, conhecido como Purana-veda.[14] Indólogos, algumas vezes, utilizam o termo germanizado “Ur-Purana”, “o Purana original”. Rocher aponta que, deste modo, incredulamente, um soma relativamente grande de conjeturas acadêmicas modernas gira bastante perto da versão purânica dos Puranas. Por exemplo, o Bhagavata Purana declara que os Puranas, bem como as histórias védicas, como o Mahabharata, formam todos “o quinto Veda”.

Junto dos quatro Vedas Rig, Sama, Atharva e Yajur, o Purana-veda fez seu advento e coexiste. Com o tempo, o único Purana-veda manifestou-se como os vários tributários que conhecemos hoje.[15]

Ao tentarmos traçar as origens dos Puranas, devemos nos lembrar de que estamos tentando sondar o conhecimento, e não tanto a linguagem utilizada para a transmissão do mesmo. É certo que o Rig-veda é merecidamente famoso por sua impecável tradição de fidelidade silábica, transmitida intacta por milhares de anos, em um sistema incrivelmente estrito de memorização e recitação. Devemos atentar ao fato, entretanto, de que o Rig-veda tem a função de um livro ritualístico. Nas execuções sacrificiais védicas para desenvolvimento de bom karma, uma cadência métrica ou pronúncia em que se equivoque é o bastante para tornar todo o processo ritualístico inútil ou até mesmo desastroso. Em razão disso, o Rig-veda exige um rigor absoluto na transmissão de sua linguagem. A sabedoria purânica, em contrapartida, jamais alega ser adepta de tais constrições silábicas. O tesouro purânico não está tanto nos menores detalhes de expressão comunicativa. Em vez disso, os Puranas preconizam a clareza original do significado, transmitindo o conteúdo sem distorções.

A tradição védica defende que, ao longo da história humana, desde tempos imemoriais, um constante núcleo de material purânico é retrabalhado e editado. O conhecimento purânico é aceito como sujeito a rearticulações, de acordo com a estrutura mental humana predominante em determinada época. Naturalmente, os indólogos modernos não optarão por uma origem imensurável quer da humanidade, quer dos Puranas. Muitos acadêmicos dedicados aos estudos índicos, no entanto, concordam, sim, que os Puranas, como agora os conhecemos, contêm muito material de uma antiguidade agora desconhecida. É interessante notar que o Mahabharata, em sua seção Adi-parva, atribui diretamente sua grandeza a ser uma compilação de materiais prévios.

Leitores de mentalidade alternativa, ávidos por perscrutar a literatura védica em busca de possíveis “pistas” da história perdida da humanidade, não devem ser calados pela tempestade em copo d’água de nome “Puranas vs. Vedas”. Tanto acadêmicos cientes disso quanto as autoridades védicas nos informarão de que referências às histórias védicas aparecem, sim, nos quatro Vedas.[16]

O Rig-veda descreve um mundo em que sábios e poetas instruídos recontam histórias e cantam as glórias de grandes eventos. Os acadêmicos modernos têm que concordar que essas não são referências internas – as declarações não fazem ligações com outros hinos no Rig-veda. Obviamente, o autor do Rig-veda presume que sua audiência tem familiaridade com o conhecimento do tipo purânico, seja de forma escrita, seja por tradição oral.[17]

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O Atharva-veda dá credenciais ao conhecimento purânico como um corpo singular ao usar conspicuamente a palavra purana em sua forma singular.

O Atharva-veda dá credenciais ao conhecimento purânico como um corpo singular ao usar conspicuamente a palavra purana em sua forma singular.[18] Além disso, quando o Atharva-veda lista os quatro Vedas, refere-se, em seguida, especificamente a itihasa (histórias védicas) e purana.[19] Obviamente, os assim chamados “Vedas originais” reconhecem, sim, a existência contemporânea de uma herança védica histórica e de comentários. Quer como uma obra escrita, quer como uma obra oral, os Puranas ganham apenas louros de autenticidade e conformidade com o que alguns erroneamente isolaram como “os textos védicos clássicos”.

Criemos uma Seita

Uma visita a uma biblioteca pública ou universitária quase sempre contará insuspeitamente ao pesquisador uma história mais ou menos assim: “Muito depois do término do ‘verdadeiro período védico’ dos quatro Vedas e das Upanishads, sacerdotes rivais quiseram estabelecer a supremacia de suas seitas diversificadas. Alguns elegeram Krishna, ‘o deus hindu do amor pastoril’; outros se congregaram em torno de Shiva, ‘o deus hindu dos fantasmas’, enquanto outros ainda escolheram Durga ou subelites alternativas do ‘panteão hindu’”. O significado da saga é que o Puranas são criações recentes. São contos confusos e incultos construídos por sacerdotes ambiciosos, que puseram em movimento os precursores das “seitas hindus modernas, que conhecemos hoje”.

Esperançosamente, neste ponto, os leitores deste material já terão desenvolvido um inestimável sexto sentido. Ao se depararem com alguma noção popular de indologia, um alarme deve tocar: “Siga a trilha até os preceptores europeus de outrora”. Podemos culpar particularmente o Império Britânico. Sim, os acadêmicos índicos modernos não engolem por inteiro os mitos de seus primeiros predecessores, mas, talvez por respeito a seus ancestrais acadêmicos, não os censurem publicamente. O resultado dessa aparente tepidez em relação à “velha guarda” é que o público instruído ainda aceita essas fantasias ultrapassadas como fatos.

H. Wilson, da cadeira Boden, conduziu a primeira campanha para rotular os Puranas como um “material sectário”. “Eles não são mais autoridades para a crença hindu como um todo: são guias especiais para ramos do hinduísmo separados e, por vezes, conflitantes”.[20] Continuando seu ataque, declarou que os sacerdotes haviam inventado os Puranas como “fraudes piedosas para propósitos temporários”.[21]

Quando o atual porta-estandarte, Ludo Rocher, realizou sua extensa revisão da pesquisa purânica, foi capaz de traçar a rota dos “Puranas sectários” de Wilson e seus colegas até os acadêmicos no século XX. Por exemplo, em 1840, Eugene Burnouf terminou em Paris o primeiro volume de sua tradução do Bhagavata Purana. O prefácio citava e endossava o veredito de Wilson, atribuindo diretamente o Bhagavata Purana a “seitas modernas”.[22]

Então, Christian Lassen, em 1847, publicou sua pesquisa enciclopédica de civilizações indianas. As partes relativas aos Puranas dependiam completamente do prefácio de Wilson, e, continuando a corrente acadêmica, refugiou-se no prefácio de Burnouf também.[23] Em seguida, em 1852, Albrecht Weber apresentou sua história da literatura indiana, e baseou suas noções de Purana exclusivamente em Lassen.[24]

O resultado desse divertido processo? Rocher diz que geração após geração de indólogos embeberam-se na noção de que os Puranas, nas palavras de Lassen, “sind im Interesse und zur Empfehlung dieser Sekten geschrieben” [os Puranas foram escritos para o interesse das seitas e para a promoção das mesmas].[25]

Em 1922, o Cambridge History of India chamou os Puranas de “sectários e propagandistas”. Alega que os Puranas “se tornaram as escrituras das várias formas do hinduísmo posterior”.[26]  Organizados compêndios, como The History and Culture of the Indian People, levaram o mesmo conceito para o último quarto do século XX.[27] Agora, já no novo milênio, essa noção continua nos relicários das bibliotecas públicas e de universidades, com pouca oposição ou correção.

A ideia tristemente onipresente de que os Puranas são produções recentes deve sua popularidade aos primeiros indólogos. Eles presumiram que o vaishnavismo e o shaivismo foram desenvolvimentos posteriores na Índia, tendo surgido muito depois dos “dias clássicos dos quatro Vedas e Upanishads”. Wilson julgou que nenhuma das “formas modernas do hinduísmo popular” poderia ser mais antiga do que o período dos preceptores védicos medievais. Ele se referia a Shankara (788–820 d.C.), Ramanuja (1017–1137 d.C.) e Madhva (1239–1319 d.C.). Dentro desse limite de tempo, em torno de um milênio depois de Cristo, Wilson alocou os Puranas. Ele opinou: “Os Puranas parecem ter acompanhado ou seguido as inovações deles, tendo sido obviamente intencionados para advogar as doutrinas que eles ensinavam. Isso é atribuir-lhes uma data muito moderna, é verdade”.[28]

Tanto durante o auge de Wilson quanto posteriormente, dissidentes manifestaram-se com eloquência. Os protestos de Vans Kennedy foram os mais proeminentes durante o tempo de Wilson. Diametralmente oposto ao ocupante da cadeira Boden, afirmou que “o mesmo sistema de religião que prevaleceu na Índia pelo menos mil anos antes de Cristo ainda prevalece hoje”.[29]

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“É deveras óbvio que não existem meios disponíveis para determinar a data ou período provável em que os Puranas foram compostos”.

Kennedy teve a astúcia de compreender que, uma vez que a Índia carecia de qualquer historiografia que os acadêmicos ocidentais pudessem penetrar, “é deveras óbvio que não existem meios disponíveis para determinar a data ou período provável em que os Puranas foram compostos”.[30] Todavia, Kennedy tornou-se uma nota de rodapé na história acadêmica do século XIX, enquanto os éditos de Wilson tornaram-se a lei para as gerações vindouras.

Em 1879, o indólogo alemão Georg Bühler expressou suas dúvidas sobre a linha do partido: “A história primitiva dos Puranas, que ainda é um mistério, somente será esclarecida quando uma verdadeira história das seitas hindus ortodoxas, especialmente os shaivites e vaishnuites, seja escrita”.[31] Agora, mais de um século depois, ainda estamos aguardando pela escrita dessa “verdadeira história”.

A noção de que os Puranas refletem seitas recentes está tombada na mente do público educado. Por exemplo, leiamos a atual Penguin Encyclopaedia of Classical Civilizations. Sua descrição dos Puranas, embora relativamente suavizada, toca a questão central. O conhecimento purânico é atribuído aos séculos depois de Cristo. Os brahmanas inventaram tudo isso para manter o mesmo passo com tendências que ganhavam força na Índia por volta dos séculos IV ou V:

A forma mais popular de hinduísmo, do período Gupta (320–ca. 550) em diante, é frequentemente chamada de “hinduísmo purânico”. Os Puranas, malgrado compostos e editados por brahmanas, são, em sua maior parte, uma manifestação de religião popular: demonstram que os brahmanas se mantiveram em sua posição de guardiões e transmissores do hinduísmo apenas por serem receptivos, ainda que relutantemente, a quaisquer inovações pelas quais conseguissem verdadeira popularidade.[32]

Note que, embora a Penguin publique um volume sobre civilizações antigas, discute os Puranas no volume que cobre as civilizações posteriores. O público instruído, independente de qual publicação busque, tem quase sempre que engolir a mesma mensagem: os Puranas, produto de uma civilização indiana posterior, são ferramentas bramânicas para tirar proveito de uma ebulição de seitas populares.

Hoje, dentro da academia, os poucos pesquisadores especializados nos Puranas ainda aceitam a teoria da “seite recente”? Silenciosamente, não. Rocher conclui seu estudo apontando que, entre os especialistas atuais, “essa tese, entretanto, não encontrou aceitação geral”.[33]

Agora, Criemos uma Data

Parece haver amplo acordo entre os acadêmicos estudiosos dos Puranas que o cerne dessas obras é um alvo móvel, o qual existia muito antes do surgimento do cristianismo. Quando a remodelação desse antigo conhecimento começou? A rearticulação do corpo procedeu indefinidamente ou terminou em certo momento? Essas são questões amplamente em aberto. Ademais, qual é a trajetória completa do Bhagavata Purana, da narração a seu status atual como uma enciclopédia espiritual genuína?

Para alguns, rearticulação automaticamente implica deterioração. Esses pressupostos sustentam que, conforme o tempo transcorreu, o núcleo purânico original certamente acumulou pilhas de bagagem excessiva. É interessante que os preceptores védicos defendem o contrário: dizem que, quando personalidades doutas reapresentam o cerne purânico original, o resultado não é uma ampliação de dificuldades, mas uma precisão renovada e esclarecimentos para nossa era em particular.

Mais uma vez, então, para empiristas ocidentais inveterados e positivistas lógicos, existe a regra geral de Moriz Winternitz: quanto mais espantoso para a mente for o conteúdo, mais recente é o Purana.[34] Em outras palavras, “se não posso compreendê-lo e ele viola por completo minhas estimadas concepções de realidade, certamente estamos lidando com uma nova perversão, uma distorção bastante recente do ‘conteúdo original e mais organizado e meticuloso’”.

Reconhecendo o desejo natural dos cientistas ocidentais de datar os Puranas, Rocher, em sua definitiva revisão da tentativa, afirma que isso é bastante próximo do impossível e chama a atenção para um paradoxo acadêmico: “Mesmo aqueles que de fato se dão conta de que datar um Purana em particular é algo altamente especulativo, se não impossível, propõem datas mais ou menos específicas”.[35]

Wendy O’Flaherty, da Universidade de Chicago, resume a futilidade desta maneira: “A datação dos Puranas é uma arte – dificilmente poderia ser chamada de ciência”.[36] Rocher conclui seu exame da datação dos Puranas sem a menor dúvida: “Alego que não é possível estabelecer uma data específica para algum Purana como um todo – opiniões, inevitavelmente, continuam a variar ampla e infindavelmente”.[37]

Sobre o autor: Devamrita Swami é discípulo de Srila Prabhupada e sannyasi desde 1982. É autor de 2 livros, sendo conhecido por sua erudição tanto no conhecimento védico como em assuntos em voga na atualidade.

 

[1] Haraprasad Shastri, “The Maha Puranas”, em Journal of the Bihar and Orissa Research Society 14 (1928): 324.

[2] Venkataram Raghavan, “Introduction to the Hindu Scriptures”, em The Religion of the Hindus, ed. Kenneth Morgan (Nova Iorque: Ronald Press Co., 1953), p. 270.

[3] Raghavan, “The Puranas”, em Sanskrit Literature, ed. V. Raghavan, (Nova Delhi: Publications Div., 1961), p. 36.

[4] H. H. Wilson, trad., Vishnu Purana, a System of Hindu Mythology and Tradition (Londres: Oriental Translation Fund Committee, 1840), p. lxxii.

[5] Vans Kennedy, Researches into the Nature and Affinity of Ancient and Hindu Mythology (Londres: Longman, 1831), p. 153–55.

[6] Paul Hacker, “Puranen und Geschichte des Hinduismus. Methodologische, programmatische und geistesgeschichtliche Bemerkungen”, em Orientalistische Literaturzeitung, 1960, p. 342.

[7] Ludo Rocher, The Puranas (Wiesbaden, Alemanha: Otto Harrassowitz, 1986), p. 5.

[8] Theodore Goldstücker, Inspired Writings of Hinduism (Calcutá: Susil Gupta, 1952), p. 105–9 a 108–9. Este texto apareceu primeiramente em “An English Journal”, 1859–63.

[9] “Puranism: or the popular religion of India”, em Calcutta Review 24, n. 48 (1855): 190, 223.

[10] Max Müller, A History of Ancient Sanskrit Literature (Londres: Williams and Norgate, 1859), p. 61.

[11] Goldstücker, Inspired Writings, p. 108–9.

[12] Theodore Goldstücker, Sanskrit and Culture (Calcutá: Susil Gupta, 1955, escrito em 1862), p. 155.

[13] Rocher, The Puranas, p. 14.

[14] Ibid., p. 17.

[15] Como citado por Rocher, Srimad-Bhagavatam 3.12.36–39.

[16] Vide capítulo 2, nota 9.

[17] Vide Rig-veda 10.90.9.

[18] Vide Atharva-veda 11.7.24.

[19] Vide Atharva-veda 15.6.4.

[20] Wilson, The Vishnu Purana, p. iii–iv.

[21] Ibid., p. vi.

[22] Eugéne Burnouf, trad., Le Bhagavata Purana, vol. 1 (Paris: Imprimerie Royale, 1840), p. xxxiv.

[23] Christian Lassen, Indische Alterthumskunde, vol. 1 (Bonn: Koenig, 1847), p. 479–82.

[24] Albrecht Weber, Academische Vorlesungen (Dümmler, 1852), p. 179–80.

[25] Lassen, Indische Alterthumskunde, p. 479.

[26] Edward Rapson, “The Puranas”, em Cambridge History of India (Cambridge: Cambridge University Press, 1922, reedição Delhi: S. Chand & Co., 1962), p. 266.

[27] M. A. Mehendale, “The Puranas”, em The History and Culture of the Indian People, vol. 3 (Bombaim: Bharatiya Vidya Bhavan, 1970), p. 297–98.

[28] Wilson, The Vishnu Purana, p. ix–x.

[29] Asiatic Journal, 1837, p. 244.

[30] Ibid., p. 243.

[31] Georg Bühler, Sacred Books of the East, vol. 2, 1879, p. xxvii–xxix.

[32] John Brockington, “Imperial India”, em Penguin Encyclopaedia of Classical Civilizations, ed. Arthur Cotterell (Londres: Penguin, 1995), p. 221.

[33] Rocher, The Puranas, p. 24.

[34] Moriz Winternitz, A History of Indian Literature, vol. 1, no. 2 (Calcutá: Calcutta University Press, 1963), p. 465.

[35] Rocher, The Puranas, p. 103.

[36] Wendy O’Flaherty, Hindu Myths: A Sourcebook Translated from Sanskrit (Penguin Books, 1975), p. 17–18.

[37] Rocher, The Puranas, p. 103.

 

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