Raganuga-bhakti, a Sabedoria Mais Confidencial do Amor a Deus

raganuga

Satyaraja Dasa 

Uma das razões para o advento do Senhor Chaitanya foi estabelecer o glorioso caminho de raganuga-bhakti. Para sinceros praticantes do serviço devocional, este caminho é buscado com tanto cuidado quanto entusiasmo, uma vez que sua cobiçada e difícil meta é redespertar nosso perdido relacionamento com Krishna emulando um ragatmika-bhakta, ou “um ser eternamente perfeito no Reino de Deus”. Em consequência disso, um prudente alerta pode ser oferecido neste momento: Na atualidade, poucos têm a honestidade e o discernimento espiritual para seguir este caminho apropriadamente. Por conseguinte, grandes acharyas atuais, como Bhaktisiddhanta Sarasvati Thakura e Srila Prabhupada, recomendam uma progressão lenta e metódica, seguindo as regras e regulações das escrituras (viddhi-bhakti), como o caminho mais adequado à massa de pessoas.

Embora frequentemente sutil e inadvertida, a propensão a enganar é um fato na vida espiritual de muitas pessoas, em razão do que os constituintes de raganuga-bhakti, tal como o processo de iniciação siddha-pranali e viver próximo ao Radha-kunda, um dos locais mais sagrados de Vraja, são comumente desencorajados pelos sábios representantes das linhagens discipulares fidedignas. Isto não se deve a tais elementos de raganuga-bhakti serem necessariamente errados – eles não são errados! –, mas se deve ao fato de que costumam ser adotados por pessoas que não estão prontas para tão avançado estágio da vida espiritual. Na verdade, os sábios declaram que aqueles que vivem prematuramente próximo ao venturoso Radha-kunda, ou “lago de Radha”, experimentarão, na verdade, o terrível Naraka-kunda, ou “lago do inferno”. Não obstante, quando alguém de fato atinge o nível de raganuga, ele está verdadeiramente satisfazendo o mano-bhistam, ou desejo interno, de Chaitanya Mahaprabhu: Que nós gradualmente logremos o nível da atração espontânea.

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Radha-kunda, um dos locais mais sagrados de Vraja.

No significado de Srila Prabhupada ao verso do Chaitanya-caritamrita 1.4.14-16, ele diz: “O Senhor Krishna quer tornar público a todas as almas condicionadas que Ele Se atrai mais por raga-bhakti do que viddhi-bhakti, ou o serviço devocional sob regulações programadas”. Srila Prabhupada, deste modo, deixa claro que, embora raga-bhakti seja deveras confidencial, todas as almas condicionadas devem aprender sua prática e seu propósito. Desta maneira, serão conscientizadas da meta última da vida. Além disso, o comentário de Prabhupada não se destina a minimizar a importância de viddhi-bhakti, que consiste em rígida disciplina, regras e regulações, e a adoração ao Senhor em respeito e reverência. A despeito de o caminho de raganuga ser independente de quaisquer prerrequisitos, um raganuga-bhakta não negligenciará viddhi, como exemplificam os Seis Gosvamis de Vrindavana. A meta última, entretanto, também tem de estar clara.

Alguns, de fato, são eternos viddhi-bhaktas, mas seu destino é o dhama Vaikuntha. Eles não vão para a morada suprema de Krishna, Goloka, onde espontaneidade, doçura e amor reinam supremos. Porque são inclinados ao respeito e à reverência, eles vão para o reino transcendental onde o Senhor é amavelmente adorado dessa maneira.

A fim de enfatizar este ponto, o Senhor diz: “Todo o universo está repleto da concepção de Minha majestade, mas o amor enfraquecido por esse senso de majestade não Me satisfaz. Se alguém Me considera o Senhor Supremo e considera a si mesmo como subordinado, Eu não Me torno subserviente ao seu amor, tampouco tal amor pode Me controlar. De acordo com a emoção transcendental (bhava) na qual Meu devoto Me adora, Eu reciproco. Esta é a Minha conduta natural”. (Chaitanya-caritamrita 1.4.17-19)

A meta é nos tornarmos cientes de nosso relacionamento eterno com o Senhor – reentrarmos nesse relacionamento – e O satisfazermos dessa maneira. Isso é feito através do processo da consciência de Krishna. Segundo o Bhakti-rasamrita-sindhu (1.2.1), a consciência de Krishna evolui por três passos: (1) sadhana-bhakti, devoção na prática; (2) bhava-bhakti, devoção em êxtase; e (3) prema-bhakti, devoção em amor puro por Deus. Deve-se apontar que sadhana-bhakti se divide ainda em viddhi e raganuga, e, a menos que a pessoa progrida para o departamento raganuga de sadhana-bhakti, como declarado anteriormente, o nível mais elevado de consciência de Krishna em geral não é auferido.

Quando alguém de fato progride para o nível de raganuga, todavia, então o “bhava” anteriormente referido tem a oportunidade de manifestar-se completamente, e o relacionamento direto (rasa) do indivíduo com Krishna se torna claro. O relacionamento pode ser um dos seguintes: (1) shanta-rasa, um relacionamento de tranquilidade ou neutralidade; (2) dasya-rasa, servidão; (3) sakhya-rasa, amizade; (4) vatsalya-rasa, afeição parental; e (5) madhurya-rasa, ou a intimidade do amor conjugal. Todos estes se baseiam no sthayi-bhava, ou relacionamento permanente, de amor por Krishna (vide Bhakti-rasamrita-sindhu 2.5.128). Muitas proeminentes autoridades vaishnavas – como Gopala Guru Gosvami (um associado íntimo de Chaitanya Mahaprabhu), Dhyanachandra Gosvami (discípulo de Sri Gopala Guru) e Narottama Dasa Thakura – realçaram a especial importância de bhavollasa-rati, a qual eles descreveram como manjari-bhava, ou a disposição de uma classe muito especial de gopi.

A fim de esclarecer bhavollasa-rati, ou manjari-bhava, farei um breve levantamento dessas devotas mais confidenciais – as gopis – e, então, identificarei explicitamente a classe particular que é atribuída a manjari-bhava.

Primeiramente, temos as parama-prestha-sakhis, “as amigas mais queridas”. Estas são as companheiras mais íntimas de Radharani – as oito principais gopis, a saber, Lalita, Vishakha, Chitra, Indulekha, Champakalata, Tungavidya, Rangadevi e Sudevi. Estas oito gopis, embora amigas de Radharani, também têm intimidade com Krishna, e, por vezes, a própria Radharani abnegadamente arranja seus passatempos com o Senhor de Seu coração.

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Krishna e Radharani, ao centro, e as oito principais gopis amigas de Radharani.

Em seguida, existem as priya-sakhis, que são subordinadas às oito primeiras e atendem suas necessidades. Há sessenta e quatro dessas gopis em particular, e elas se dividem em oito grupos de oito – um grupo para cada gopi primária. Elas, entretanto, também têm seus próprios encontros com Krishna. Há inumeráveis outras gopis também, conhecidas geralmente como as sakhis, que têm experiência similar. Ou elas amam Krishna intensamente (krishna-snehadhika), ou elas amam Radha e Krishna igualmente (sama-snehadhika).

As prana-sakhis e as nitya-sakhis, contudo, constituem um grupo extraordinário de gopis. O amor delas por Radharani revela-se supremo (bhavollasa-rati), e este é tão intenso que elas desejam apenas levá-lA para Krishna, sem nenhuma consideração por seu próprio relacionamento com Ele. Isto é o manjari-bhava. Mesmo caso Radharani insista, semelhante manjari não irá ter com Krishna. Essa é a determinação de uma manjari. Ela é abnegada. Krishna pertence exclusivamente a Radha, e ela fará o que quer que seja necessário para deixar os dois juntos. Sua primeira preocupação é Radhika (radha-snehadhika).

É claro, as manjaris são, em última instância, as mais afortunadas de todas as gopis, e elas não ficam sem recompensa por seu senso de completo desapego, o que é explicado por Srila Prabhupada:

É muito difícil expressar sua [das manjaris] relação com Krishna porque elas não têm nenhum desejo de se unir a Krishna ou de desfrutar dEle pessoalmente. Ao contrário, estão sempre prontas para ajudar Radharani a ter com Krishna. A afeição delas por Krishna e Radharani é tão pura que elas ficam satisfeitas simplesmente quando Radha e Krishna estão juntos. Com efeito, todo o seu prazer transcendental está em ver Sri Radha e Krishna unidos. A verdadeira forma de Radharani é tal qual uma trepadeira abraçando a árvore Krishna, e as donzelas de Vraja, as companheiras de Radharani, são como as folhas e flores dessa trepadeira. Quando uma trepadeira abraça uma árvore; as folhas e flores, tal qual a trepadeira, automaticamente abraçam a árvore. O Govinda-lilamrita (10.16) confirma que Radha é a expansão da potência de prazer de Krishna, e é comparada a uma trepadeira, e Suas companheiras, as donzelas de Vraja, são comparadas às flores e folhas dessa trepadeira. Quando Radharani e Krishna divertem-Se juntos, as donzelas de Vraja sentem mais prazer do que a própria Radharani. (Os Ensinamentos do Senhor Chaitanya)

Chaitanya Mahaprabhu veio a fim de dar a todas as entidades vivas a oportunidade de experienciar manjari-bhava, o estado de serviço abnegado a Srimati Radharani (que também é conhecido como radha-dasya). O êxtase associado a tal abnegação supera até mesmo o êxtase de Radharani, como declarado acima. Esta é a maior e mais confidencial dádiva de Sri Chaitanya Mahaprabhu à humanidade.

Radharani não é destituída de tal prazer. Na verdade, Seus principais êxtases originam-se de tentar arranjar encontros entre Krishna e as principais gopis. Srila Prabhupada, também em Os Ensinamentos do Senhor Chaitanya, explica:

Embora as companheiras de Radharani não esperem nenhuma atenção pessoal de Krishna, Radharani é tão agradada delas que Ela arranja encontros individuais entre Krishna e as donzelas de Vraja. Com efeito, Radharani tenta combinar ou unir Suas associadas com Krishna por meio de vários artifícios transcendentais, e Ela Se apraz mais com esses encontros do que com Seus próprios encontros com Ele. Quando Krishna vê que tanto Radharani quanto Suas companheiras estão contentes por se associarem com Ele, Ele fica mais contente. Tal associação e reciprocação amorosa nada tem a ver com a luxúria material, embora lembrem a união material entre homem e mulher. É apenas porque essa similaridade está presente que tal reciprocação algumas vezes é chamada, na linguagem transcendental, de luxúria transcendental. Como explicado no Gautamiya-tantra (citado em Bhakti-rasamrita-sindhu 1.2.285): “Luxúria significa apego à própria gratificação sensorial pessoal. Contudo, no que diz respeito a Radharani e às Suas associadas, elas não desejavam gratificação sensorial pessoal para si. Elas queriam apenas satisfazer Sri Krishna.

Neste contexto, “luxúria transcendental” se refere principalmente ao amor das principais gopis, e as manjaris auxiliam as gopis que são dadas a essa “luxúria” espiritual. Raganuga-bhakti, sendo modelada com base em ragatmika, geralmente se divide em duas categorias: os seguidores daqueles com “luxúria transcendental” (kamanuga), que se situam unicamente em madhurya-rasa, e os seguidores daqueles que desfrutam de “bhakti relacional” (sambandhanuga), que podem estar ocupados em quaisquer das cinco rasas porém não se dão à marca especial de “luxúria” da madhurya em discussão. Isto é elaboradamente explicado por Srila Rupa Gosvami em seu Bhakti-rasamrita-sindhu (1.2.290). O nível mais elevado, diz Sri Rupa, é o caminho de kamanuga, o caminho das gopis, e esse caminho supremo é verdadeiramente facilitado por aqueles em manjari-bhava. Em consequência, manjari-bhava é visto como a posição preeminente.

Os vaishnavas gaudiyas se distinguem dos vaishnavas de outras sampradayas em sua busca pelo manjari-bhava, conquanto as escolas de Nimbarka Svami, Vallabhacarya e Harivamsha abordem o assunto. Seguir os passatempos das exemplares manjaris é natural para aqueles na linha de Mahaprabhu, haja vista que esta foi a contribuição ímpar do Senhor Chaitanya. Os próprios Seis Gosvamis de Vrindavana eram manifestações das seis manjaris primárias, tal como eram Lokanatha Gosvami e Krishnadasa Kaviraja Gosvami, bem como muitos dos grandes acharyas na linha vaishnava.

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Os Seis Gosvamis de Vrindavana.

A base escritural que alude a manjari-sadhana pode ser traçada ao Padma Purana, ao passo que instruções tácitas podem ser encontradas no Vilapa-kusumanjali, de Raghunatha Dasa Gosvami. Também há referências na obra Stavamala, de Rupa Gosvami. O Archana-paddhati, de autoria de Dhyanachandra, desenvolve o tema, e Narottama Dasa Thakura o aborda de maneira sistemática. Visvanatha Cakravarti Thakura também lida com o assunto com algum detalhamento tanto em seu Krishna-bhavanamrita quanto em seu Raga-vartma-chandrika.

Bhaktivinoda Thakura escreveu sobre a temática extensamente: O capítulo quinze do Harinama-chintamani, intitulado “Bhajana-pranali”, fornece minúcias acerca da base fundamental do manjari-sadhana, isto é, raganuga-bhakti. No Jaiva Dharma, os dois heróis da história se encontram com Gopala Guru Gosvami e Dhyanachandra, os quais, no capítulo vinte e seis, apresentam detalhes preliminares sobre raganuga-bhakti e fazem alusão a manjari-sadhana. Ademais, em “Siddhi-lalasa”, parte de sua obra Sharanagati, Srila Bhaktivinoda Thakura lida especificamente com manjari-bhava e menciona sua própria forma como uma manjari no mundo espiritual, onde ele é conhecido como Kamala Manjari. Assim, há ampla literatura sobre o assunto na linha ortodoxa do vaishnavismo gaudiya.

June McDaniel, professor auxiliar no Departamento de Estudos de Filosofia e Religião na Faculdade de Charleston, Carolina do Sul, discorre sobre a natureza do manjari-sadhana, ou a prática daqueles que desejam seguir os passos das manjaris:

Na lila de Vrindavana, a pessoa visualiza a si mesma como internamente feminina, uma criada (manjari) de Radha. Esse corpo tem doze ou treze anos de idade, é vestido por um sári de determinada cor, reside em determinada residência e tem um tipo particular de serviço, seguindo a orientação de uma criada que já faça parte do paraíso. Essa mulher mais experiente explica os detalhes do serviço a Radha e Krishna para a recém-chegada. Além desta informação, o discípulo tem que memorizar a distribuição da Vrindavana paradisíaca: Tem de aprender a localização da casa e da vila de Radha, da casa e da vila de Krishna, do Radha-kunda (o lago na floresta onde Radha e Krishna Se encontram), bem como o local dos vários caramanchões ao redor do Radha-kunda. Elaborados diagramas de todas essas localidades são mantidos por gurus vaishnavas especializados em ensinar tal visualização. Uma vez que isso seja aprendido, o discípulo tem que aprender as atividades eternas de Radha e Krishna. Esse conjunto de atividades é dividido nas oito partes que dividem as vinte e quatro horas do dia. Em cada um desses horários, Radha e Krishna têm uma ação específica que o discípulo tem que visualizar em seu corpo espiritual. Ele tem que se adequar apropriadamente à cena com seu corpo e serviço visualizados.

O conceito de “as oito partes que dividem as vinte e quatro horas do dia”, conhecido como asta-kaliya-lila, será abordado posteriormente. Antes de discuti-lo, seria prudente apontar que o próprio Chaitanya Mahaprabhu era dado ao manjari-bhava, e há evidências disso em vários episódios retratados no Chaitanya-caritamrita. No décimo quarto capítulo da Antya-lila, por exemplo, Sri Chaitanya diz a Svarupa Damodara: “Quem Me tirou da colina de Govardhana e Me trouxe para cá? Eu estava vendo os passatempos do Senhor Krishna, mas agora não os posso ver. Ouvindo a vibração da flauta de Krishna, Srimati Radharani e todas as Suas amigas gopis foram até lá para se encontrarem com Ele. Elas estavam todas muito bem vestidas. Quando Krishna e Srimati Radharani entraram juntos em uma caverna, as outras gopis pediram-Me que colhesse algumas flores”. Neste ponto, Chaitanya Mahaprabhu não está atuando como Radha ou Krishna, senão que está experimentando o êxtase de manjari-bhava.

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Chaitanya Mahaprabhu colhe flores enquanto experimenta o êxtase de manjari-bhava.

Isto é novamente visto no capítulo cinco, também da Antya-lila, capítulo este no qual Mahaprabhu, novamente conversando com Svarupa Damodara, diz: “Após ouvir a vibração da flauta, fui para Vrindavana, onde vi que Krishna, o filho de Maharaja Nanda, estava tocando Sua flauta pelos pastos. Ele levou Srimati Radharani para um caramanchão fazendo sinal com Sua flauta. Ele, então, entrou naquele caramanchão para realizar passatempos com Ela. Eu adentrei o caramanchão logo atrás de Krishna, com Meus ouvidos cativados pelo som de Seus ornamentos. Eu vi Krishna e as gopis desfrutando de toda sorte de passatempos enquanto riam e faziam brincadeiras. Ouvir suas expressões vocais aumentou o júbilo de Meus ouvidos”. Aqui também temos um exemplo da disposição de manjari-bhava, visto que Mahaprabhu não está atuando nem como Radhika nem como Krishna, mas como alguém que está regozijante simplesmente por vê-lOs desfrutarem juntos. Por fim, Narottama Dasa Thakura conclui em seu Ragamala que Mahaprabhu é uma manjari.

Tendo sido estabelecido que raganuga-bhakti, e seu concomitante manjari-bhava, era uma razão central – a razão interna – para o advento de Sri Chaitanya, há questões que precisam ser urgentemente discutidas. Como alguém acha o caminho para raganuga-sadhana-bhakti? Quais são os perigos e percalços? De onde a pessoa começa?

Muito simples, o indivíduo tem que começar buscando por um mestre espiritual fidedigno e indagando-lhe submissamente. Também se deve prestar serviço subalterno ao mestre espiritual de acordo com as regras e regulações das escrituras. Isso se chama vaidhi-bhakti. Deve-se ainda aprender a ouvir e cantar o nome de Krishna – Hare Krishna, Hare Krishna, Krishna Krishna, Hare Hare/ Hare Rama, Hare Rama, Rama Rama, Hare Hare – sob a guia desse mestre espiritual. No começo, especialmente, é o santo nome – e não a lembrança de Krishna em si – que nos conduz à perfeição.

Em viddhi-bhakti, o devoto é chamado a se submeter a uma autoridade superior e a prestar vários atos de serviço a Sri Krishna dessa maneira. Embora o processo de rendição comece neste estágio, a pessoa ainda está, muito amplamente, atuando de acordo com sua identidade corpórea e ainda não se modelou com base em um habitante de Vraja. Através da associação e das atividades devocionais prescritas, entretanto, o praticante se familiariza com a conduta e com as escrituras vaishnavas, o que inclui os passatempos de Krishna e de Seus associados. Mediante prolongada exposição, o sujeito se lembra de sua posição constitucional eterna e se restabelece em sua identidade real, divorciando-se das ilusões associadas ao corpo e à mente deste mundo. O praticante fica curado da “amnésia” e começa a se lembrar de sua vida original no Reino de Deus. David Haberman, professor auxiliar na Faculdade Williams, discorre:

Exige-se do praticante de vaidhi-bhakti que ele frequentemente ouça (charitra-sravana), lembre-se (smarana), cante (lila-kirtana) e medite (krida-dhyana) nas histórias da Vraja-lila. Esses exercícios familiarizam o praticante com o mundo de Vraja e com os personagens que o habitam. Peças teatrais (como as rasa-lilas) também é um dos meios favoritos para se tornar o mundo da Vraja-lila objetivamente disponível à comunidade interessada. Ali, o bhakta [devoto], como espectador, é presenteado com uma vívida expressão do supremo mundo de Vraja, que pode fornecer um antegozo estético desse mundo e um poderoso incentivo para buscar mais pelo mesmo. Ademais, o praticante de vaidhi-bhakti, estudando continuamente as escrituras vaishnavas que narram a Vraja-lila, é como um ator aprendendo o roteiro de uma peça a ser encenada. Um estudo de raganuga-sadhana-bhakti demonstrará que de fato existe tal fórmula, a qual é a seguinte: O indivíduo entra na realidade religiosa assumindo, pela adoção de um papel, uma identidade dentro dessa realidade. A nova identidade é o veículo para a nova realidade. Grande atenção, então, tem de ser dada ao sistema de papéis e às estruturas rituais aconselhadas pelas tradições religiosas para a construção de novas identidades para indivíduos interessados, assim os transportando para uma nova realidade concomitante. Vaishnavas gaudiyas alegam que uma nova identidade é o passaporte de entrada para a mais elevada realidade, o teatro de Krishna. (David Haberman, Acting as a Way of Salvation : A Study of Raganuga Bhakti Sadhana)

O seguidor de vaidhi-bhakti pode gradualmente desenvolver lobha (desejo interno) ou mesmo laulyam (avidez) por auferimentos mais elevados, e esse é o começo de raganuga-sadhana-bhakti. Tendo passado pelos níveis de sraddha (firme fé), sadhu-sanga (o desejo de se associar com devotos de mesma mentalidade), bhajana-kriya (o ponto de séria meditação e comprometimento, e frequentemente de iniciação), e anartha-nivrtti (a gradual extinção de hábitos pessoais indesejados), a pessoa pode atingir o estado de lobha ou laulyam no estágio de nistha, ou “transcendental estabilidade”. (Cf. Bhakti-sara-pradarsini 1.3.7, de Srila Visvanatha Cakravarti Thakura).

Quando o indivíduo experimenta semelhante desejo, ele faz bem em aproximar-se de seu mestre espiritual para pedir-lhe instruções pertinentes em relação a isso. Se alguém está realmente pronto, o guru apresentará informações específicas em relação ao siddha-deha, ou a forma perfeita do indivíduo no mundo espiritual. Isso talvez reflita qualquer número de relacionamentos, mas, para os vaishnavas gaudiyas, especialmente, isso se refere, em geral, a manjari-bhava. Bhaktivinoda Thakura diz até mesmo, citando o afamado Archana-paddhati, de Dhyanachandra Gosvami, que os vaishnavas gaudiyas tendem a ter duas formas espirituais: uma masculina, na Chaitanya-lila, e uma feminina (manjari), na Krishna-lila.

O perigo, é claro, é para aqueles que ainda não estão prontos. Assim, na Índia, há preponderância de prakrita-sahajiyas, ou pessoas que tomam esses ensinamentos de maneira barata, fazendo imitações banais. É fácil enganar o público geral, mas o sujeito, deste modo, é privado dos benefícios da verdadeira vida espiritual. Naturalmente, o caminho seguro é vaidhi-sadhana-bhakti, indo além apenas quando se tem as bênçãos do guru. Mesmo então, deve ser uma prática feita em estrita confidência, haja vista que é, fundamentalmente, um processo esotérico e profundamente interno.

Na verdade, ao contrário da crença popular, trata-se de uma meditação interior. Raganuga-bhakti não exige que o praticante se vista como uma gopi, por exemplo, ou exiba externamente sinais de êxtase, apesar de estes serem os atributos mais marcantes de um prakrita-sahajiya. Um verdadeiro raganuga-bhakta continua estritamente sua disciplina tal como se fosse um ideal vaidhi-bhakta.

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Prakrita-sahajiya vestido de Radharani.

Contudo, sua meditação interna é diferente, e, para praticar genuinamente tal meditação no próprio siddha-deha, especialmente se o indivíduo é da natureza de madhurya-rati, há onze itens (eka-dasha-bhava) dos quais ele deve estar ciente: seus nome, relacionamento, idade, cor do corpo, grupo, veste, ordem, residência, serviço, maior desejo ou expectativa e sob a tutela de quem ele serve. Lembremos que isto não se refere à aparência corpórea externa, mas à verdadeira existência espiritual da pessoa no reino de Deus. As minúcias dessa existência são reveladas pelo guru e ampliadas por meditação pessoal.

O sadhana mental do raganuga-bhakta requer principalmente uma técnica meditativa chamada lila-smarana. Este smarana, ou “lembrança” (ou mesmo “visualização”), é o seio de raganuga-sadhana-bhakti. Srila Prabhupada comenta sobre lila-smarana em sua obra Krishna, A Suprema Personalidade de Deus:

Eles [os residentes de Vrindavana] ficavam pensando: “Krishna estava brincando assim. Krishna estava tocando Sua flauta. Krishna estava galhofando conosco, e Krishna estava nos abraçando”. Isto se chama lila-smarana, e é o processo de associação com Krishna mais recomendado pelos grandes devotos – mesmo o Senhor Chaitanya desfrutou da associação lila-smarana de Krishna quando Ele estava em Puri. Aqueles que estão na mais elevada posição de serviço devocional e êxtase podem sempre viver com Krishna mediante a lembrança de Seus passatempos. Srila Visvanatha Cakravarti Thakura presenteou-nos com uma obra transcendental intitulada Krishna-bhavanamrita, a qual é repleta de passatempos de Krishna. Os devotos podem permanecer absortos em pensar em Krishna por meio da leitura de tais livros. Qualquer livro da Krishna-lila, mesmo este livro, Krishna, e nosso Os Ensinamentos do Senhor Chaitanya, é verdadeiramente um consolo para os devotos que estão sentindo saudades de Krishna.

O Krishna-bhavanamrita, entre outros livros mencionados por Srila Prabhupada, leva-nos além de uma lembrança geral dos passatempos de Krishna e delineia lila-smarana mais especificamente, com especial atenção à lembrança da divisão do dia em Vrindavana em oito partes (asta-kaliya-lila), como mencionado anteriormente. Srila Prabhupada menciona diretamente este fenômeno em sua tradução ao verso 10 do Upadeshamrita, embora as palavras “asta-kaliya-lila” não se encontrem no texto sânscrito em si. Através disso, Prabhupada está obviamente expondo o significado interno do texto, que promove lila-smarana. Embora Prabhupada raramente mencione este tipo de conceito diretamente, referências ao mesmo podem ser encontradas esporadicamente ao longo de seus livros e conversas gravadas. Subentende-se, por conseguinte, que se trata de uma parte da tradição gaudiya, endossada por discípulos avançados.

Esta asta-kaliya-lila é apresentada como um breve poema por Rupa Gosvami em seu Asta-kaliya-lila-smarana-mangala-stotram, que é diretamente baseado no Patala-khanda do Padma Purana. Visvanatha Cakravarti Thakura revelou um significado esotérico da asta-kaliya-lila, dentro do qual a prática poderia ser aplicada para lembrar os passatempos de Mahaprabhu em Navadvipa. Srila Bhaktivinoda Thakura também desenvolveu o princípio das oito partes do dia de modo a incluir Sri Chaitanya Mahaprabhu, o que fez em seu clássico Sriman-mahaprabhor-asta-kaliya-lila-smarana-mangala-stotram.

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Bhaktivinoda Thakura, um dos grandes vaishnavas estudiosos de raganuga-bhakti e forte opositor dos prakrita-sahajiyas.

A fim de praticar lila-smarana em plenitude, é preciso conhecer o próprio siddha-deha e ser capaz de visualizar essa forma espiritual original. Como já mencionado, o dia em Goloka Vrindavana se divide em oito partes, e, de acordo com os detalhes das escrituras e dos acharyas predecessores, o bhakta entra em uma meditação particular de acordo com um dia corriqueiro em Vraja. A meditação é deveras complexa, e exige um nível de concentração capaz apenas a um devoto extraordinariamente qualificado. Há três livros que orientam de maneira prática essa meditação: O Krishna-bhavanamrita, mencionado anteriormente; o Krishnahnika-kaumudi, de Kavi-karnapura, e o mais destacado, o Govinda-lilamrita, de Krishnadasa Kaviraja Gosvami.

Com base no Govinda-lilamrita, o historiador de Vrindavana Alan Entwistle apresenta um brevíssimo porém eloquente resumo da asta-kaliya-lila em sua obra Braj: Centre of Krishna Pilgrimage:

Em seu Govinda-lilamrita, Krishnadasa Kaviraja declara que o propósito do livro é inspirar os devotos a contemplarem os vários passatempos de Krishna e Radha como eles se desenrolam ao longo do dia. Ele começa o ciclo com o primeiro período (pratah), quando Vrinda [uma proeminente gopi] chama pelos pássaros para acordarem Krishna e Radha, que Se encontram a dormirem juntos após terem Se encontrado à noite para a dança da rasa. Eles Se levantam e deixam o caramanchão com Suas roupas e cabelos em desalinho, retornam para Suas respectivas casas e vão sorrateiramente para cama antes que os demais moradores da casa acordem. Durante o segundo período (purvahna), Paurnamasi [a imaculada intermediária e avó de Madhu-mangala, o brahmana amigo e confidente de Krishna] visita a casa de Nanda de modo a ver Krishna acordar. Ela nota as marcas causadas por Suas brincadeiras românticas com Radha, mas presume que tais marcas são o resultado de Ele ter brincado de luta com Balarama [Seu irmão mais velho] antes de ir dormir. Krishna Se levanta, brinca com os outros garotos e sai para ordenhar as vacas, enquanto Radha é acordada por sua sogra [Jatila, mãe de Abhimanyu] e dá início às Suas atividades rotineiras. Durante o terceiro período (madhyahna), Krishna sai para a floresta a fim de pastorear o gado enquanto Radha e as sakhis vão adorar Surya. A sogra de Radha encoraja as sakhis a levarem-nA com elas de sorte a mantê-lA ocupada, pois ela suspeita que Krishna tentará Se encontrar com Ela. Apesar da medida, Eles Se encontram sim na floresta, e, durante o quarto período (aparahna), divertem-Se às margens do Radha-kunda. Após brincarem de balanço e Se divertirem na água do lago, Radha retorna para casa, e Krishna, durante o quinto período (sayam), leva o gado de volta para a vila enquanto toca Sua flauta. Durante o sexto período (pradosha), Krishna e Radha comem Sua refeição noturna e trocam olhares sentados nos gazebos em Suas respectivas casas. Durante o sétimo período (ratri), todos vão dormir, e Radha e Krishna, às escondidas, vão para Seu encontro secreto em Vrindavana. Durante o oitavo período (nishanta), Eles dançam às margens do Yamuna, divertem-Se na água e, por fim, retiram-Se para o caramanchão.

O leitor vaishnava mais arguto notará vários problemas técnicos na sinopse acadêmica de Entwistle. Na verdade, nishanta sim é o primeiro período, de modo que os períodos não estão devidamente enumerados. E Paurnamasi não é quem se engana com as marcas no corpo de Krishna, e sim mãe Yashoda. Contudo, como uma visão geral, ignorando os detalhes, a narração de Entwistle é boa, ao menos como uma introdução.

Devotos doutos e observadores perceberão a correlação entre as oito partes do dia e as cerimônias de arati, ou adoração à Deidade. Isto tem por objetivo conferir ao contemplativo praticante de vaidhi-sadhana-bhakti um antegosto pela anelada meta de sua prática: ingressar no serviço amoroso espontâneo (raganuga). Os oito períodos da vida diária da Deidade podem ser comparados e contrastados com a meditação asta-kaliya-lila para um entendimento mais profundo de cada cerimônia de arati.

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Srila Prabhupada adora Sri Sri Radha-Gokulananda, Hertfordshire, Inglaterra.

(1) Mangala-arati: As Deidades de Sri Sri Radha e Krishna são despertas de Seu sono transcendental, usualmente por volta das 4 horas da manhã, e vários artigos são oferecidos para o Seu prazer. (2) Sringara-arati: Krishna é elaboradamente vestido para Suas atividades do dia, e o mesmo em relação a Srimati Radharani. Também Lhes é oferecido desjejum. (3) Raja-bhoga-arati: Oferece-se, então, uma farta refeição ao meio-dia, após o que as Deidades são preparadas para um breve cochilo. (4) Utthapana-arati: Elas são despertas de Seu cochilo de maneira a continuarem Suas atividades diárias. (5) Sandhya-arati: Durante uma hora específica do crepúsculo, as Deidades retornam para casa – Krishna do pastoreio das vacas, e Radharani de Suas atividades – para descansarem de um dia atarefado. (6) Vyalu-bhoga-arati: Neste momento, serve-se às Deidades Sua grande refeição noturna. (7) Shayana-arati: A última oferenda ocorre entre 9 horas e 10 horas e 30 minutos da noite, e os devotos podem ver as Deidades pela última vez no dia antes que as portas do altar se fechem. Neste momento, as Deidades são vestidas para irem para cama. (8) Rasa-lila: Depois que as Deidades vão descansar, Elas não devem ser perturbadas, pois, nesse momento, Elas saem furtivamente para desfrutar de Sua transcendental dança da rasa, e retornam apenas nas primeiras horas da manhã, pouco antes do Mangala-arati.

Há algumas variações para este tema – aratis são, por vezes, tratados por nomes diferentes e outros detalhes –, mas, em essência, assim é como o Senhor e Seus associados passam o dia. Este é o segredo íntimo da sampradaya gaudiya, e pode ser experimentado na plataforma espiritual mediante estrita adesão ao processo da consciência de Krishna. Que todas as almas condicionadas, e mesmo liberadas, beneficiem-se com esta experiência é o desejo íntimo (mano-bhistam) de Sri Chaitanya Mahaprabhu.

Tentei, neste breve artigo, apresentar sucintamente esta revelação esotérica – a principal contribuição de Chaitanya Mahaprabhu –, chamada manjari-bhava (em relação a raganuga-sadhana-bhakti), porque muitos devotos sinceros e acadêmicos igualmente sinceros solicitaram-me que o fizesse. Acatei seu desejo tanto para minha própria purificação quanto para o benefício de todos os leitores interessados. Trata-se de um tema extenso e detalhado, em virtude do que, por falta de maiores qualificações pessoais, não prossigo me alongando sobre o mesmo. É um aspecto confidencial da Verdade Absoluta, e mesmo o quanto apresento aqui eu o faço unicamente com a esperança de motivar leitores a estudarem mais profundamente o vaishnavismo gaudiya, a consciência de Krishna.

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