Somos Todos Ladrões?

Arcana Siddhi Devi Dasi

Tudo com que lidamos é propriedade alheia.

Quase todos já experimentamos o desprazer de perder algo de valor. Algumas vezes, concluímos que colocamos em algum lugar que não podemos lembrar ou que perdemos o objeto. Embora seja uma sensação de desprazer, tal sensação é muito pequena perto daquela de descobrirmos que o objeto não foi colocado em algum lugar errado, mas que foi roubado – pior ainda se foi roubado por alguém que conhecemos. Há alguns anos, quando abri minha carteira, dei falta de cem dólares. Eu tinha certeza de que esse dinheiro estava ali no dia anterior. Após alguma investigação, descobri que um dos amigos do meu irmão havia pegado o dinheiro. Eu fiquei revoltada, e me senti violentada e machucada.

Quando trabalhava como psicoterapeuta em uma clínica de saúde mental na periferia de minha cidade, eu atendia frequentemente crianças que haviam tido algum histórico de roubo. Algumas vezes eram pegos com pequenos objetos, como CDs de lojas de música, por exemplo, e outras vezes roubando carros estacionados na rua. Eu me esforcei muito para induzi-los a imaginarem como as vítimas de seus crimes se sentiam – saindo de casa pela manhã para ir ao trabalho, e não encontrando seu carro. Mas a maioria daquelas crianças não tinha capacidade para imaginar os sentimentos da pessoa roubada. Não só não podiam entender, como pareciam não se importar. A falta de consciência social deles levava a um prognóstico muito negativo.

Como potenciais vítimas de seus crimes, tentamos proteger nossas propriedades com sofisticados sistemas de alarme, comunidades muradas e cães de guarda. Apesar de tais “proteções”, somos assolados por crimes insidiosos, como ladrões de identidade, que roubam diretamente de nossas contas ou fazem uma cópia falsa de nosso cartão de crédito. Cortadores de papel se tornaram um eletrodoméstico essencial em muitas casas, e temos que regularmente checar a fatura do cheque e do cartão de crédito para ver se não há nenhuma atividade desautorizada. Os elaborados crimes dos colarinhos-brancos crescem a cada ano, roubando milhões de pessoas.

A que se atribui esse crescimento descontrolado de diversas categorias de roubo em nossa sociedade? De uma perspectiva psicológica, poderíamos ver isso como produto da ausência de responsabilidade social que cresce junto com o crescimento do senso de alienação. Alguns fatores que contribuem para esse senso de despersonalização são a ruptura da estrutura familiar, falta de comunidade, e o papel da igreja cada vez mais apagado. Algumas pessoas pensam que as desigualdades sociais e econômicas tornam o ato de roubar lícito. Outros fatores externos, como pobreza e dependência de drogas, exacerbam essa dinâmica psicológica.

Mas, para entender a causa primária, busco a perspectiva espiritual dos atemporais comentários védicos. Eles dizem que estamos vivendo na mais degradada era, a Era de Ferro, caracterizada pela trapaça e pela hipocrisia. Todos os pilares da vida ética, moral e religiosa – que incluem austeridade, limpeza, misericórdia e veracidade – praticamente desapareceram com a entrada desta era. O roubo é apenas um sintoma do declínio desses princípios. Os princípios religiosos se tornam proeminentes quando as pessoas entendem que tudo pertence e é controlado por Deus. Em essência, nada é nosso. Nós fomos apenas incumbidos com uma cota da propriedade de Deus, o que nos torna responsáveis por usarmos tal posse temporária de forma que dê prazer ao seu dono.

Mesmo as dádivas da natureza – água, luz solar, madeira, minerais, pedras preciosas – são fornecidas para que as usemos no serviço ao Senhor e a Seus devotos. O Senhor criou o mundo material para sanar nosso desejo de desfrutar em separado dEle. Ele abundou este mundo com todos os ingredientes que precisamos para vivermos de forma feliz e avançarmos espiritualmente. Se não reconhecemos quem é o verdadeiro dono, e usamos para o nosso prazer os recursos disponíveis, então também somos ladrões, e teremos que sofrer as consequências de nossos atos.

Durante uma caminhada matinal na Índia, Srila Prabhupada conversava com um empresário muito rico e perguntou para ele qual era a natureza de seus negócios. Quando o homem respondeu que tinha uma fábrica de vidro, Prabhupada lhe perguntou como o vidro era feito. O homem disse que o vidro é produzido a partir da areia.

Quem é o dono da areia?

“E quem é o dono da areia?”, Prabhupada perguntou.

“Bhagavan, Deus, é o dono.”

“Oh! Então você está roubando de Bhagavan?”, Prabhupada desafiou.

Tentando se livrar daquela situação, o homem disse que dava muito dinheiro em caridade.

“Ah, então você é um ladrão de pequeno porte”, Prabhupada disse sorrindo.

Ao mesmo tempo em que Prabhupada encorajava seus discípulos e a congregação a trabalharem em empresas honestas, ele também nos lembrava de que Krishna é o dono de nossa empresa e que deveria ser dado de volta a Ele o máximo possível dos frutos do trabalho. Usando nosso tempo e dinheiro no serviço ao Senhor e a Seus devotos, lucramos de diversas maneiras. Oferecer o resultado ao Senhor purifica nosso trabalho e nos liberta tanto das boas quanto das más reações de nosso trabalho. De outra forma, tomando para nós o que não é legitimamente nosso, enredamo-nos ainda mais no samsara, o ciclo de nascimentos e mortes.

Nossa Cota

Isso levanta a questão de como determinar a cota que nos foi cedida pelo Senhor Supremo. Como diversos aspectos da vida espiritual, a resposta necessita de introspecção honesta e sincera. Temos, cada um, diferentes necessidades, mas devemos nos permitir ser guiados e iluminados pelas escrituras. A Sri Isopanisad e a Bhagavad-gita, por exemplo, sugerem que sejamos moderados quanto à satisfação de nossas necessidades corpóreas. Não devemos trabalhar arduamente para obter posses ordinárias ou para conseguir coisas que sejam muito difíceis de serem obtidas.

Nós também devemos aceitar a orientação de devotos avançados que conheçam nossa natureza psicológica e possam nos ajudar a discernir quanto a qual padrão de vida é mais benéfico no suporte a nossas práticas espirituais. Quando Prabhupada estava arquitetando o local de residência dos devotos em seu projeto de templo na Índia, ele incluiu “confortos modernos”, como vasos sanitários com descarga e chuveiros, coisas que não eram muito comuns na Índia naquele tempo. Ele entendia a estrutura psíquica particular de seus discípulos ocidentais e era cuidadoso em providenciar um padrão de vida que fosse condizente com a natureza deles.

Mesmo dentro da cultura ocidental, há uma vasta variedade de indivíduos. O que pode parecer excessivo para uma pessoa, talvez não pareça o bastante para outra. Nossa cota fornecida por Krishna talvez também varie de acordo com nosso serviço específico a Ele, nosso nível de avanço espiritual, e nossa habilidade em administrar bens materiais. Krishna deu muito a Prabhupada, e Prabhupada não usou sequer uma moeda para a gratificação de seus sentidos.

Yukta-vairagya

Enquanto os discípulos de Chaitanya Mahaprabhu frequentemente demonstravam avanço através de austeras renúncias, Srila Prabhupada exibia o princípio de yukta-vairagya – o uso de recursos materiais para o serviço a Krishna. Um homem certa vez mencionou a Prabhupada um yogi famoso que se recusava a aceitar dinheiro. Em resposta, Prabhupada fez um movimento com a mão como se estivesse pegando dinheiro, dizendo que usaria todo aquele dinheiro para o serviço a Krishna. Prabhupada visionava usar toda quantia de dinheiro que tivesse para imprimir livros sobre a consciência de Krishna e para construir belos templos para o benefício de todo o planeta. A perfeição de nossa inteligência é aceitar os presentes de Deus e oferecê-los de volta a Ele na forma do serviço devocional amoroso.

A compreensão superior de renúncia de Prabhupada fazia com que ele sempre procurasse uma oportunidade de ocupar outros no serviço a Krishna. Existe a famosa história do homem bêbado que invadiu o primeiro templo de Nova Iorque enquanto Prabhupada palestrava. O bêbado passou por toda a audiência e colocou alguns rolos de papel higiênico no banheiro e foi embora sem falar nenhuma palavra. Prabhupada disse que o homem não estava sóbrio, mas que havia começado sua prática do serviço devocional. Então, tudo que ofereçamos será bom para nós – nunca saímos perdendo ao servir o Senhor.

Quando uma criança compra uma lembrança para seu pai com o dinheiro que foi dado por seu pai, o pai sente-se querido, e sua afeição pelo filho cresce. Da mesma forma, Krishna sente-Se mais atraído por nós quando oferecemos de volta a Ele os recursos que Ele nos dá.

É assim que convertemos nossa mentalidade de ladrão para a mentalidade de devoto. Quando descemos para o mundo material, esquecemos nossa posição como servos eternos do Senhor. Assim, tentamos imitar o desfrutador supremo explorando a natureza material para o prazer de nossos sentidos. Ignoramos o Senhor e tentamos ser felizes independentes dEle.

O Senhor é tão doce que, mesmo com nossa relutância em voltar para Ele, Ele está sempre conosco. Ele Se senta em nosso coração e testemunha todas as nossas atividades. Ele nos vê quando estamos doando, e Ele nos vê quando estamos roubando. Ele envia Seus representantes, as almas puras, para nos ajudarem a entender como devemos viver nossas vidas. Ele envia Seu santo nome para purificar nossos desejos e para nos ajudar a viver em harmonia com os princípios divinos.

Aqueles que recebem Sua misericórdia têm a obrigação de ajudar outros que estão agonizando neste mundo. Quando ajudamos na distribuição do santo nome e da consciência de Krishna, mais e mais pessoas se transformam em servos amorosos do Senhor. Assim, esta Era de Ferro pode ter todas as qualidades da Era de Ouro, na qual as pessoas entendem a divindade do Senhor e a relação que têm com Ele, como Seus servos eternos. Esse é o verdadeiro antídoto para as aflições da sociedade.

O Ladrão de Manteiga

Para ajudar as almas rebeldes a saírem do emaranhamento material e se reconectarem a Ele, o Senhor aparece pessoalmente neste mundo e exibe Seus passatempos para atrair nossa mente e nosso coração para o Seu serviço. Alguns dos passatempos mais famosos consistem no Senhor roubando de Seus devotos. Krishna desfruta transcendentalmente ao roubar manteiga e iogurte das vaqueiras de Vrindavana. Também sente imenso prazer roubando as vestes das jovens camponesas.

Krishna, o ladrão de manteiga.

Tudo tem sua origem no Senhor. As qualidades negativas que encontramos aqui neste mundo são simplesmente reflexos pervertidos do comportamento puro do Senhor. Quando roubamos uns aos outros no mundo material, criamos o sentimento de hostilidade e cultivamos o desejo de vingança – que se opõem ao amor e preocupação com o bem dos outros. Mas quando Krishna rouba de Seus devotos, eles sentem exultante felicidade. E o sentimento de amor entre o devoto e o Senhor cresce imensamente. Trata-se de uma grande celebração, um festival de sentimentos amorosos.

Por outro lado, como Deus pode roubar algo uma vez que tudo pertence a Ele? Seus roubos são parte de Sua peça divina, que é inspirada pelo Seu amor por Seus devotos. Somos apenas pequenas centelhas da energia do Senhor, e tudo que possuímos está apenas emprestado a nós durante esta vida. Não há, assim, razão para tentarmos imitar as atividades do Senhor, mas, ao contrário, devemos orar ao Senhor pedindo que roube nosso coração deste mundo ilusório e nos permita, mais uma vez, fazer parte de Seus passatempos eternos.

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