As Cores do Amor Prático na Narrativa do Srimad-Bhagavatam

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O mundo ocidental se engessou em uma crise de impessoalismo, onde se tem conhecimento das qualidades ideais, porém não se identifica o objeto a quem elas pertencem. E como poderemos sustentar e desenvolver virtudes cardeais sem o conhecimento prático do parceiro com as quais devemos praticá-las? E será que alguém sabe com propriedade disso? Será que existe alguma fonte, escritura ou pessoa que descreveria as nuances mais íntimas do Absoluto?

Maha Krishna Nama Dasa

O amor incondicional nunca está fundamentado no ato de se tentar receber alguma coisa. Ao contrário, é uma experiência de dar e uma atividade jubilosa em que cada participante luta para compartilhar mais generosamente do que o outro
(B. T. SWAMI, 2008, p. 52)

Em nossa contemporaneidade, na qual nadamos em águas niilistas, estamos embalados por um sono secular que só conseguiu fazer cochilar doutos e obtusos, o que não nos privou de colher seus frutos amargos sob a forma do hedonismo, da crise de valores e de uma violência exacerbada, covarde e sem princípios.

Afogamo-nos em meio a uma sociedade antropofágica, cruel e egoísta, onde o lodo se escorre por todos os lados, tão próximo e no lugar que mais incomoda: dentro de nós mesmos. Dentro desse panorama, alguém poderia levantar uma impertinente pergunta e questionar se realmente existe ou existiu amor. Será que foi um projeto radiante tentado em algum passado distante no alvorecer da humanidade? Ou seria uma vontade cega, um ímpeto poderoso e irresistível que nos remete ao ciclo da vida meramente biológica e a continua, como queria Schopenhauer?

No monumental filme do diretor sueco Ingmar Bergman, Cenas de um Casamento (1973), a personagem vivida pela atriz Liv Ullmann, atuando no papel de uma advogada de família em um casamento bem estruturado, reflete sobre o amor em uma entrevista a uma revista feminina: “Ninguém nunca me disse o que é o amor e não tenho certeza se precisamos saber…”.

Bergman não fica apenas em uma posição evasiva e despeitada sobre o tema, mas ele se posiciona e elenca um momento clássico e norteador a respeito do amor para nós ocidentais, um enunciado que funciona como uma espécie de farol, jorrando luz e guiando outros rumo a uma definição em relação a tal dizer.

Ainda que eu falasse as línguas dos homens e dos anjos, e não tivesse amor, seria como o metal que soa ou como o sino que tine. E ainda que tivesse o dom de profecia, e conhecesse todos os mistérios e toda a ciência, e ainda que tivesse toda a fé, de maneira tal que transportasse os montes, e não tivesse amor, nada seria. E ainda que distribuísse toda a minha fortuna para sustento dos pobres, e ainda que entregasse o meu corpo para ser queimado, e não tivesse amor, nada disso me aproveitaria. O amor é sofredor, é benigno; o amor não é invejoso; o amor não trata com leviandade, não se ensoberbece. Não se porta com indecência, não busca os seus interesses, não se irrita, não suspeita mal; Não folga com a injustiça, mas folga com a verdade; Tudo sofre, tudo crê, tudo espera, tudo suporta. O amor nunca falha; mas havendo profecias, serão aniquiladas; havendo línguas, cessarão; havendo ciência, desaparecerá; Porque, em parte, conhecemos, e em parte profetizamos; Mas, quando vier o que é perfeito, então o que o é em parte será aniquilado. Quando eu era menino, falava como menino, sentia como menino, discorria como menino, mas, logo que cheguei a ser homem, acabei com as coisas de menino. Porque agora vemos por espelho em enigma, mas então veremos face a face; agora conheço em parte, mas então conhecerei como também sou conhecido. Agora, pois, permanecem a fé, a esperança e o amor, estes três, mas o maior destes é o amor. (I Corintios 13.1-13)

Na voz da musa e (ex-)esposa do diretor sueco, se diz que tal descrição nos coloca em “xeque”, algo muito distante e difícil de concretizar sendo exasperado nos gritos e sussurros das exclamações do homem comum do hoje-em-dia.

Mesmo que a declaração de Marianne (Liv Ullmann) reflita o fracasso da atual geração por conhecer não só esse tênue sentimento, mas a coisa em si; a decepção por pensar e almejar algo que não conseguiu ser concretizado ou se mostrou inalcançável por um determinado paradigma – como apontou Kant através de seus juízos sintéticos e a priori –, abandonando a metafísica como um conhecimento prático e universal.

O fato interessante é o de que, apesar da revelação bíblica supracitada prevenir contra prováveis equívocos, resolvemos percorrer caminhos epistemológicos totalmente opostos, chegando a uma rua sem saída, fria, escura e agonizante.

A ferramenta para se investigar o em si já está dada, mas nossa insistência teima em querer trazer o céu para a terra, em encarar o suprassensível como sensível por meio de instrumentos e métodos incompatíveis.

Tanto a metafísica quanto o amor não são objetos sensíveis, mas suprassensíveis. O amor, por exemplo, como podemos constatar nas aspirações dos poetas e literatos do romantismo como Alvares de Azevedo, Casemiro de Abreu e Camilo Castelo Branco; o endeusamento da diva, o amor inacessível por um objeto perfeito. Tais motivações só podem ser preenchidas por um elemento eterno e perfeito, o qual é fonte e objeto de reciprocação de tal sentimento arrebatador.

Tal êxtase, apesar de ser experimentado como um fac-símile por participação no plano sensível, jamais é correspondido, devido tanto ao sentimento quanto ao objeto não se encontrarem no plano empírico de forma plena, mas apenas como exemplo, portanto mutável e temporário.

A descrição de João é primorosa, consegue esquadrinhar com muita competência as qualidades do amor e seus atributos. Realmente se tem uma boa definição de como é o amor, supremo e transcendente, mas a sina insólita do mundo ocidental foi a de não conceber e visualizar a prática desse amor em sua forma pura e aplicada no mundo espiritual. Ou seja, como seriam tais qualidades executadas na relação da alma com Deus, de maneira clara e vívida? Como isso acontece de maneira incorruptível em sua fonte original?

O conhecimento precede o amor, no sentido de que, para amarmos alguém, é necessário que tenhamos informação detalhada das particularidades e gostos daquela pessoa, exatamente para que depois eu possa satisfazê-la. Se eu conheço o tipo de flor, o tipo de perfume e o tipo de gastronomia, bem como o lugar que gosta de ir e a roupa a vestir, desenvolvo afinidades que me aproximam de tal pessoa.

Como posso amar alguém que me é praticamente desconhecido? Mesmo que saibamos dos atributos e qualidades de tal pessoa, ou do amor em nosso caso, ainda temos insuficientes informações para estabelecermos um profundo e substancial enlace.

Quando nos contam de uma paquera possível, um candidato ao amor em potencial, a primeira coisa que queremos é ver essa pessoa ou flagrar sua foto. “Como é a sua forma? De onde vem? O que faz?”, entre outras perguntas de igual sorte. Já que vou me entregar a essa suposta pessoa, um conhecimento prévio, uma descrição mínima, um conhecimento a priori, é necessário para que se desenvolva apreço e consequentemente amor.

Como posso desenvolver e aplicar esse amor se eu não tenho informação sobre a pessoa à qual o dedicar? Por falta de dados detalhados e precisos sobre o Pai, sobre a Pessoa Suprema, afundamo-nos em uma crise de impessoalismo generalizado. Conhecemos de forma satisfatória e racional os atributos, mas sabemos de forma opaca e pueril sobre o sujeito possuidor de tais atributos. Se possuo uma soma vertiginosa de dinheiro, mas não sei como gastá-lo, como aplicá-lo? De que me adianta?

Desde Platão até Hegel, ouvimos sobre o Bem em si, sobre o Motor Imóvel, Deus, Espírito ou a Coisa em si, ou um princípio pelo qual tudo se origina e vem a ser. São descritos os atributos dessa coisa, mas nunca como é a sua Forma real e contínua. Pessoas todos os dias desfrutam de um bacalhau sem saberem nem ao menos a aparência dele – se é um peixe, um crustáceo ou mesmo um cetáceo. O mundo ocidental se engessou em uma crise de impessoalismo, onde se tem conhecimento das qualidades ideais, porém não se identifica o objeto a quem elas pertencem nem pelo qual possamos dedicar e intercambiar tais virtudes excelsas. E como poderemos sustentar e desenvolver virtudes cardeais sem o conhecimento prático do parceiro ou objeto repositório de tais qualidades com as quais devemos praticá-las?

E será que alguém sabe com propriedade disso? Será que existe alguma fonte, escritura ou pessoa que descreveria as nuances mais íntimas do Absoluto, tanto de maneira holística quanto por meio de suas especificidades à exaustão?

O tema da divindade, ou do Brahman, é estudado com muita profundidade e rigor na Índia antiga, especialmente nos textos védicos, em particular no Vedanta-sutra. Nessa obra, que é aceita como autoridade máxima em termos de filosofia nos Vedas, se diz janmady asya yatah: “A Verdade Absoluta é a fonte de onde tudo emana e existe”. (Vedanta-sutra 1.1.1)

O comentário natural ao Vedanta, o Srimad-Bhagavatam, feito pelo próprio autor, Srila Vyasadeva, vai apontar para três aspectos diferentes e graduais, dentro de um parecer racional ou filosófico a respeito desse Brahman: vadanti tat tattva-vidas tattvam yaj jnanam advayam/ brahmeti paramatmeti bhagavan iti shabdyate (Srimad-Bhagavatam 1.2.11), “Transcendentalistas eruditos que conhecem a Verdade Absoluta chamam essa substância não-dual de Brahman [brahmajyoti] , Paramatma ou Bhagavan[1]“.

Desses três aspectos, o primordial é Bhagavan, ou a Verdade Absoluta como uma pessoa perfeita, eterna e incondicional. Apesar dos outros aspectos serem qualitativamente iguais, emanam do aspecto pessoal, como assevera Prabhupada:

A Verdade Absoluta é tanto sujeito quanto objeto, e não há diferença qualitativa nisso. Portanto, Brahman, Paramatma e Bhagavan são qualitativamente a mesma coisa. A mesma subs­tância é realizada como Brahman impessoal pelos estudantes das Upanishads, como Paramatma localizado pelos hiranyagarbhas ou yogis, e como Bhagavan pelos devotos. Em outras palavras, Bhagavan, ou a Personalidade de Deus, é a última palavra da Verdade Absoluta. Paramatma é a representação parcial da Per­sonalidade de Deus, e o Brahman impessoal é a resplandecente refulgência da Personalidade de Deus, assim como os raios do Sol o são para o deus do Sol (BHAKTIVEDANTA, 1995, p. 19).

Tal obra, o Srimad-Bhagavatam, ou Bhagavata Purana, além de extrair o siddhanta, a conclusão perfeita de toda a vasta literatura védica, vem presentear seus leitores com o mais secreto e confidencial de todos os saberes, a descrição da Suprema Personalidade – Deus ou Krishna – em Sua morada, em Suas atividades mais íntimas e sigilosas:

Todo leitor atento certamente repetirá este enaltecimento. O Bhagavata é o livro preeminente na Índia. Uma vez que hajas entrado nele, és transplantado, como costumava ser, para o mundo espiritual, onde a matéria grosseira inexiste. O verdadeiro seguidor do Bhagavata é um homem espiritual que já cortou sua conexão temporária com a natureza fenomênica e tornou-se habitante daquela região onde Deus existe e ama eternamente. Esta poderosa obra tem por alicerce a inspiração, e sua superestrutura baseia-se no ato de refletir. Para o leitor comum, ela não possui encanto algum, e é deveras dificultosa. Somos, em razão disso, obrigados a estudá-la profundamente com o auxílio dos grandessíssimos comentadores, como Sridhara Svami e o divino Chaitanya e Seus seguidores contemporâneos. (BHAKTIVINODA, 1869, p. ?)

A importância do Srimad-Bhagavatam é encarada da seguinte forma quando analisada por meio de sua tradição, preservando-se dos anacronismos e das limitações da academia, como exposto pelos editores da edição em português da obra:

A eterna sabedoria da Índia expressa-se nos Vedas, textos antigos em sânscrito que abrangem todos os campos de conhecimento huma­no. Preservados originalmente através da tradição oral, os Vedas fo­ram postos na forma escrita pela primeira vez há cinco mil anos por Srila Vyasadeva, a “encarnação literata de Deus”. Após redigir os Vedas, Vyasadeva expôs-lhes a essência nos aforismos conhecidos como Vedanta-sutras. O Srimad-Bhagavatam é o comentário de Vyasadeva a seus próprios Vedanta-sutras. Ele o escreveu na maturi­dade de sua vida espiritual, sob a orientação de Narada Muni, seu mestre espiritual. Chamado de “o fruto maduro da árvore da literatura védica”, o Srimad-Bhagavatam é a exposição mais completa e autorizada do conhecimento védico (Srimad-Bhagavatam, 1995, PREFÁCIO).

O grande comentador e tradutor do Srimad-Bhagavatam para as regiões além dos limites do subcontinente indiano, A.C. Bhaktivedanta Svami Prabhupada, em meados da década de 50 e 60 – antes mesmo de vir aos Estados Unidos –, fez uma avaliação de extrema importância em seu prólogo, denotando a relevância desse Purana para o contexto e as pessoas em nosso mundo e contexto atual:

É preciso que nos conscientizemos das atuais necessidades da sociedade humana. E quais são essas necessidades? A sociedade humana não se restringe mais a fronteiras geográficas de países ou comunidades específicos. Atualmente, há um contato maior do que na Idade Média, e o mundo tende para a formação de um Estado único ou uma sociedade humana única. Os ideais do comunismo espiritual, segun­do o Srimad-Bhagavatam, baseiam-se mais ou menos na unidade de toda a sociedade humana, não só isso, mas inclusive na totalidade da energia dos seres vivos. Grandes pensadores sentem a necessidade de fazer desse comunismo espiritual uma ideologia exitosa. O Srimad-Bhagavatam preencherá essa lacuna da sociedade humana. Portanto, para estabelecer o ideal de uma causa comum, o Bhagavatam come­ça com o aforismo da filosofia do Vedanta (janmady asya yatah).

No momento atual, a sociedade humana não se encontra na escuri­dão do esquecimento. Em todo o mundo, tem-se progredido rapida­mente no campo dos confortos materiais, da educação e do desenvolvimento econômico. Mas, de um modo geral, há uma irritação em alguma parte do corpo social, que, consequentemente, está pro­duzindo desavenças em grande escala, mesmo por questões de me­nor importância. É necessária uma orientação no sentido de que a humanidade possa unificar-se em paz, amizade e prosperidade em prol de uma causa comum. O Srimad-Bhagavatam satisfará essa necessidade, pois é uma contribuição cultural para a reespiritualização de toda a sociedade humana (BHAKTIVEDANTA, 1995, PRÓLOGO).

Dada à devida introdução, nosso objetivo neste trabalho é o de demonstrar a partir do Bhagavata Purana um dos momentos mais explícitos na questão da relação prática de amor entre a alma e a Pessoa Suprema.

Tal demonstração de amor serve como base nuclear nessa altura do texto, preparando e purificando a consciência do leitor para algo ainda mais elevado remetido no Décimo Canto, o epítome de todo o livro, mesmo porque o objetivo da obra é o de descrever um nível mais íntimo e prazeroso de relacionamento, o amor em sua plenitude, totalmente espiritual e sem máculas de contaminação material exercidas pelo egoísmo, encontrados no nível de madhurya, ou as doçuras do amor conjugal entre Krishna, a Suprema Personalidade de Deus e o repositório transcendental deste sublime sentimento numenal na forma das Suas devotas mais elevadas. Elas, as gopis[2], são o mais elevado símbolo de bhakti-yoga que existe.

O amor que pretendemos retratar encontra-se numa plataforma basilar, exatamente para compreendermos as características essenciais desse estado puro de consciência – tão equívoco ou deturpado atualmente –; o tão ovacionado amor de Deus, descritos no terceiro canto da obra, na conversa entre Maitreya Rishi e Vidura narrando a atitude de Narayana com Jaya e Vijaya, os porteiros de Vaikuntha, e os quatro Kumaras.

Dos capítulos 6 a 12 do terceiro canto do Srimad-Bhagavatam, são descritos os temas de sarga e visarga (Srimad-Bhagavatam 2.10.1) por Maitreya, ou a criação e subcriação subsequentes na macroestrutura da cosmogonia védica. Em seguida, a primeira lila, ou atividade transcendental do Senhor ou de Suas encarnações, é a de Varahadeva (shukara rupa), o Senhor na forma de um javali transcendental.

No frenesi de ouvir a primeira descrição sobre seu adorável Senhor e no forte ímpeto de poder saborear ainda mais, Vidura, que havia feito um voto, pediu-lhe com mãos postas o obséquio de narrar outras atividades transcendentais do Senhor, uma vez que ele [Vidura] ainda não estava satisfeito (3.14.1). Ele queria ouvir como o demônio original [Hiranyaksha] foi morto pela própria forma dos sacrifícios, a Personalidade de Deus (3.14.2). Qual teria sido o motivo da luta entre o rei-demônio e o Senhor Javali, enquanto o Senhor erguia a Terra como Seu passatempo? (3.14.3).

Maitreya recebera tais descrições do grande duelo entre o Senhor e o grande demônio por meio de Brahma (3.14.7), o qual começa a narrar a origem de Hiranyaksha como os filhos indignos de Diti e Kashyapa Muni. Devido ao fato de Diti ter sido atormentada pelo desejo sexual, o casal fora levado a conceber filhos em um momento impróprio (3.14.8-10).

O capítulo seguinte, o quinze, irá descrever a vida prévia dos heréticos irmãos Hiranyaksha e Hiranyakashipu, de como esses foram os porteiros do mundo espiritual (Jaya e Vijaya), Vaikuntha-dhama, mas que, por terem cometido uma ofensa, tiveram que nascer neste mundo como tais criaturas.

Para isso, um tópico fundamental do décimo quinto capítulo, intitulado “Descrição do Reino de Deus”[3], é o de tecer uma visão objetiva do mundo espiritual, as características de seus habitantes, sua psicologia e profunda motivação, a personalidade central e harmônica desse lugar na forma de Narayana, além da descrição vívida da fauna, flora e forma corpórea dos seus nativos em verdadeiros afrescos sobre o mundo transcendente. (3.15.14-22)

Brahma explica como seus quatro filhos mentais, os quatro Kumaras [Sanaka, Sanatana, Sanandana e Sanat-kumara], em uma de suas perambulações cósmicas devido aos seus incomparáveis poderes místicos, chegam à região do paravyoma (o céu espiritual), a residência de Deus onde se encontram os planetas Vaikuntha, pois estavam livres de todas as contaminações materiais [amala-atmanah­]. (3.15.12-13)

Quando os quatro sábios-meninos, que aparentavam ter apenas cinco anos de idade e nada tinham para cobrir seus cor­pos além da atmosfera, foram vistos pelos porteiros, que cismaram de manifestar uma atitude bastante desagradável ao Senhor, barraram-nos com suas lanças, desde­nhando suas glórias, embora os sábios não merecessem esse trata­mento da parte deles. (3.15.30) Assim, é desencadeado o evento em que os quatro meninos santos, sob as vistas de outras divindades, com seus olhos subita­mente avermelhados de ira devido a sua grande ânsia de ver seu amadíssimo mestre, Sri Hari, a Personalidade de Deus, amaldiçoam os porteiros-devotos a caírem no mundo material já que viam dualidade e, portanto, não eram dignos de estarem ali. (3.15.31-34)

Após esse incidente, eis que surge a maior de todas as personalidades descritas nas páginas dos Vedas, o Senhor Hari, o qual tem Sua forma descrita por meio do embasbacamento arrebatante dos quatro sábios que puderam contemplá-la face a face e que atua com o objetivo de abençoar a todos.

Os sábios, encabeçados por Sanaka Rishi, observaram que a Suprema Personalidade de Deus, Vishnu, que anteriormente só lhes era visível dentro de seus corações em transe extático, tinha agora Se tornado visível ante seus olhos. Conforme Ele avançava, acompanha­do por Seus próprios associados que portavam todos os apetrechos, tais como um guarda-sol e um abano chamara, os brancos tufos do abano chamara moviam-se muito suavemente, como dois cisnes, e, devido à brisa favorável, as pérolas que enguirlandavam o guarda-sol também se mexiam, como gotas de néctar caindo da branca Lua cheia ou como o gelo derretendo-se devido a uma rajada de vento. O Senhor é o reservatório de todo o prazer. Sua presença auspiciosa destina-se à bênção de todos, e Seu sorriso e olhar afetuosos tocam o âmago do coração. A bela cor do corpo do Senhor é ane­grada, e Seu peito largo é o lugar de repouso da deusa da fortuna, que glorifica todo o mundo espiritual, o pináculo de todos os plane­tas celestiais. Assim, parecia que o Senhor estava pessoalmente espalhando a beleza e boa fortuna do mundo espiritual. O belo rosto do Senhor parecia-lhes a parte interior de um lótus azul, e Seu sorriso parecia um florescente jasmim. Após verem o rosto do Senhor, os sábios ficaram plenamente satisfeitos e, quando quiseram vê-lO mais, voltaram os olhos para as unhas de Seus pés de lótus, que se assemelhavam a rubis. Assim, eles contemplaram o corpo transcendental do Senhor repetidamente, até que finalmente entraram em meditação no aspecto pessoal do Senhor”. (Srimad-Bhagavatam 3.15.38-39 e 44).

Após as devidas congratulações entre Vishnu e os quatro brahmanas, será exposto em primeira pessoa o sentimento de afeição da Personalidade Suprema para com Seus servos e benquerentes como se segue: tad vah prasadayamy adya brahma daivam param hi me/ tad dhity atma-kritam manye yat sva-pumbhir asat-kritah, “Para Mim, o brahmana é a personalidade mais elevada e mais amada. O desrespeito mostrado por Meus assistentes foi em verdade demonstrado por Mim, visto que eles são Meus servidores. Tomo isso como uma ofensa da Minha parte, em virtude do que peço Vosso perdão pelo ocorrido”. (Srimad-Bhagavatam 3.16.4)

A maneira cálida de como Vishnu aceita as atividades de seus servos pessoais como as Suas próprias ações com o sentimento de amparar e proteger tais devotos é demonstrado nesse sloka, juntamente com o exemplo de proteção e reverência com a cultura bramânica em relação aos quatro Kumaras.

É dito que yasyamritamala-yashah-sravanavagahah sadyah punati jagad a-sva-pachad vikunthah/ so ’ham bhavadbhya upalabdha-sutirtha-kirtis chindyam sva-bahum api vah pratikula-vrittim: “Em todo o mundo, qualquer pessoa, inclusive o baixo chandala, que vive de cozinhar e comer carne de cachorro, purifica-se imedia­tamente caso se banhe em ouvir a glorificação de Meu nome, fama etc. Agora que Me compreendestes sem dúvida, não hesitarei em amputar Meu próprio braço se sua conduta mostrar-se hostil a vós”. (Srimad-Bhagavatam 3.16.6)

Aqui se estabelece uma comparação por meio de uma expressão fortíssima. Não existe nada mais querido para uma entidade viva do que seu próprio corpo, sua identidade, mas Hari promete amputar uma parte dEle em prol do benefício de seus recém-convertidos devotos, os quatro Kumaras, expressando assim sua gratidão e afeto a eles, instruindo indiretamente tanto os sábios como a sociedade em geral.

O Senhor expressa sua gratidão aos Kumaras, que tinham recentemente se tornado Seus devotos. Quão obrigado Ele Se sentia aos Seus porteiros, que O tinham servido por tanto tempo. O Senhor, o maior dos professores, estava instruindo indiretamente os Kumaras e promovendo a realização sobre a profundidade do amor que Ele sente por Seus devotos. (BHURIJANA, 2006, p. 542)

O verso seguinte vem declarar a posição do Senhor em um de Seus aspectos mais elevados e proeminentes como bhakta-vatsala, ou aquele que se torna o servo do Seu próprio devoto: yat-sevaya charana-padma-pavitra-renum sadyah kshatakhila-malam pratilabdha-shila/ na srir viraktam api mam vijahati yasyah preksha-lavartha itare niyaman vahanti, O Senhor continuou: Porque sou um servo de Meus devotos, Meus pés de lótus tornaram-se tão sagrados que imediatamente eliminam todos os pecados, e adquiri uma disposição tal que a deusa da fortuna não Me deixa, apesar de Eu não ser apegado a ela, e não obstante os outros louvarem sua beleza e observarem votos sagrados para conseguir dela mesmo um pequeno favor”. (Srimad-Bhagavatam 3.16.7)

A lógica em sua sequência normal aponta que quanto maior a posição de uma autoridade, maior será seu prestígio e consequente honraria dada pelos demais devido ao seu poder, influência e a atitude diante dessa posição, acompanhados por um sorrateiro desejo de espera por tais honrarias pela parte do indivíduo. Tal lógica é espantosamente quebrada quando se adquire informações sólidas por meio dos grandes acharyas e conhecedores da Pessoa Suprema em relação à disposição humilde e submissa diante daqueles que mais estão próximos a Ele.

Devido ao egoísmo estar ausente e o amor extremamente presente, o que se espera não é glórias e recompensas para si, mas uma disposição amorosa com o bem-estar do outro. Esse sentimento que personifica o mundo espiritual é mostrado em primeiro plano pela própria Pessoa Suprema em Vaikuntha.

Enquanto a lógica no plano material é a de uma competição terrível contra os outros, a lógica no mundo espiritual é explicada por Srila Prabhupada da seguinte maneira:

A relação entre o Senhor e Seu devoto é transcendentalmente bela. Assim como o devoto pensa que é por ser um devoto do Senhor que ele adquire todas as boas qualidades, da mesma forma, o Senhor também pensa que é por causa de Sua devoção ao servidor que todas as Suas glórias transcendentais aumentam. Em outras palavras, assim como o devoto está sempre ansioso por prestar serviço ao Senhor, da mesma forma, o Senhor está sempre ansioso por prestar serviço ao devoto. O Senhor admite neste verso que, embora Ele certamente tenha a qualidade de transformar em grande personali­dade qualquer pessoa que receba uma pequena partícula da poeira de Seus pés de lótus, essa grandeza deve-se à Sua afeição por Seu devoto. É por causa dessa afeição que a deusa da fortuna não O deixa e que, não somente uma, mas muitas milhares de deusas da fortuna ocupam-se a Seu serviço (Srimad-Bhagavatam 3.16.7 sig.).

Os próximos versos, de 8 a 12, descrevem a relação do Senhor de Vaikuntha com Seus adoradores, os quais vamos abordá-los na íntegra.

naham tathadmi yajamana-havir vitane scyotad-ghrita-plutam adan huta-bhun-mukhena/ yad brahmanasya mukhatas carato ’nu-ghasam tushtasya mayy avahitair nija-karma-pakaih

“Eu não desfruto das oblações oferecidas pelos sacrificadores no fogo de sacrifício, que é uma de Minhas próprias bocas, com a mesma satisfação com que experimento as delícias inundadas em ghi que são oferecidas às bocas dos brahmanas que dedicam a Mim os resultados de suas atividades e que sempre ficam satisfeitos com Minha prasada”. (Srimad-Bhagavatam 3.16.8).

yesham bibharmy aham akhanda-vikuntha-yoga-maya-vibhutir amalanghri-rajah kiritaih/ viprams tu ko na vishaheta yad-arhanambhah sadyah punati saha-chandra-lalama-lokan

“Eu sou o senhor de Minha desimpedida energia interna, e a água do Ganges é o resto deixado depois que Meus pés são lavados. Essa água santifica os três mundos, juntamente com o Senhor Shiva, que a carrega sobre sua cabeça. Se Eu posso levar a poeira dos pés do vaishnava sobre Minha cabeça, quem se recusará a fazer o mesmo?”. (Srimad-Bhagavatam 3.16.9)

ye me tanur dvija-varan duhatir madiya bhutany alabdha-sharanani cha bheda-buddhya/ drakshyanty agha-kshata-drisho hy ahi-manyavas tan gridhra rusha mama kushanty adhidanda-netuh

“Os brahmanas, as vacas e as criaturas indefesas são Meu próprio corpo. Aqueles cuja faculdade de julgamento tem sido debilitada por seus próprios pecados veem-nos como diferentes de Mim. Eles são como serpentes furiosas, e são iradamente dilacerados pelos bicos dos mensageiros semelhantes a abutres de Yamaraja, o superinten­dente das pessoas pecaminosas”. (Srimad-Bhagavatam 3.16.10)

ye brahmanan mayi dhiya kshipato ’rchayantas tushyad-dhridah smita-sudhokshita-padma-vaktrah/ vanyanuraga-kalayatmaja-vad grinantah sambodhayanty aham ivaham upahritas taih

“Por outro lado, cativam Meu coração aqueles que são alegres de coração e que, com os rostos de lótus iluminados por sorrisos nectá­reos, respeitam os brahmanas mesmo que os brahmanas[4] profiram palavras ásperas. Eles consideram os brahmanas como Meu próprio Eu e apaziguam-nos louvando-os com palavras afetuosas, da mesma maneira que um filho acalmaria um pai irado ou como Eu estou vos apaziguando”. (Srimad-Bhagavatam 3.16.11)

tan me sva-bhartur avasayam alakshamanau yushmad-vyatikrama-gatih pratipadya sadyah/ bhuyo mamantikam itam tad anugraho me yat kalpatam achirato bhritayor vivasah

“Estes Meus servos vos maltrataram, desconhecendo a mentalidade de seu amo. Portanto, considerarei um favor para coMigo se orde­nardes que, embora colhendo o fruto de sua transgressão, eles regressem logo à minha presença e que o prazo de seu exílio de Minha morada expire em breve”. (Srimad-Bhagavatam 3.16.12)

Pelas páginas do Bhagavatam, podemos acompanhar pelas lilas espirituais da Suprema Personalidade de Deus a descrição prática dos relacionamentos amorosos no mundo transcendental aceita por grandes autoridades – o relacionamento entre Deus e a alma espiritual na própria atmosfera divina.

Tal comportamento tanto da parte de Vishnu quanto dos porteiros Jaya e Vijaya deixaria os Kumaras totalmente aturdidos, sem saber se o Senhor estava fazendo pilhérias ou sendo extremamente sincero, devido ao fato de que nem mesmo grandes sábios podem entender a Pessoa Suprema.

Um sentimento totalmente desinteressado, sem expectativas de ganho ou lucro; total atenção com o bem-estar do outro sem se importar em algum momento consigo mesmo e a glorificação total do seu objeto de afeição acompanhados de uma proteção e cuidados ímpares dão os tons das matizes do amor que a Pessoa Suprema, sob a forma de Vishnu, nutre em relação aos Seus devotos e caracteriza o comportamento padrão no mundo espiritual.

Apesar de os meninos brahmanas terem cometido uma ofensa aos queridos porteiros e servos do Senhor, esses são elevados à posição de vaishnavas a fim de ser provado que mesmo grandes yogis se tornam bhaktas (3.15.42), mas o contrário nunca acontece, e que o único temor de um devoto é o de perder a oportunidade de servir e estar próximo aos pés de lótus do Senhor, mas, em última instância, havia um plano transcendental por meio da vontade inconcebível do Senhor por trás de tais atividades (Srimad-Bhagavatam 3.16.26).

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REFERÊNCIA BIBLIOGRÁFICA 

BHAKTIVINODA, Thakura. O Bhagavata: Sua Filosofia, Seu Sistema Ético e Sua Teologia. Discurso composto em inglês proferido em Dinajpur, Índia: 1869.

BHURIJANA, Dasa. Unveiling His Lotus Feet A detailed Overview of Srimad-Bhagavatam, Cantos One-Four. New Delhi: Vaishnava Institute for Higher Education (VIHE), Índia: 2006.

BÍBLIA. Português. Bíblia sagrada. Versão eletrônica encontrada em: http://www.paulus.com.br/biblia-pastoral/_PZF.HTM no dia 27/11/2013.

CENAS de um casamento. Direção: Ingmar Bergman. Produção: Cinematograph Films. Intérpretes: Liv Ullmann, Earland Josephson e outros. Roteiro: Ingmar Bergman. Svensk Filmindustri, 1973 color (2:4:56).

Śrémad-Bhagavatam. A. C. Bhaktivedanta Svami. Com texto original em sânscrito, sua transliteração latina, sinônimos, tradução e significados. São Paulo: Bhaktivedanta Book Trust, 1995.

Sri Caitanya Caritamrita. A. C. Bhaktivedanta Svami. Com o texto bengali original e sua transliteração latina, os equivalentes em português. Tradução Paravyoma dasa, Mahakala dasa, Angira Muni dasa. São Paulo: Bhaktivedanta Book Trust, 1984.

SWAMI, B. T. Guerreiro Espiritual II. Transformando amor em Luxúria. Tradução Mitra Gopi dd e Indumukhi dd. Pindamonhangaba: Harinama Press, 2008.


[1] A Verdade Absoluta como a refulgência onipenetrante, como aspecto localizado e como uma Pessoa, respectivamente.

[2] Em seu Anubhashya, Srila Bhaktisiddhanta Sarasvati Thakura comenta: “As gopis ocupam-se puramente no serviço ao Senhor, sem qualquer motivação. A opulência de Krishna não as cativa, nem a compreensão de que Ele é a Suprema Personalidade de Deus”. Naturalmente, as gopis sentiam-se inclinadas a amar Krishna, pois Ele era um atrativo jovem da aldeia de Vrindavana. Sendo aldeãs, elas não sentiam muita atração pelo campo de Kurukshetra, onde Krishna esteve presente com elefantes, cavalos e trajes reais. Na verdade, elas não apreciavam muito Krishna em uma atmosfera assim. Krishna não Se sentia atraído pela opulência ou beleza pessoal das gopis, mas sim pelo serviço devocional puro delas. De modo semelhante, as gopis sentiam-se atraídas por Krishna como vaqueirinho, sem aparências sofisticadas. O Senhor Krishna é inconcebivelmente poderoso. Para compreendê-lO, grandes yogis e pessoas santas abandonam todas as ocupações materiais e meditam nEle. Da mesma forma, aqueles que sentem excessiva atração pelo gozo material, pelo incremento de opulência material, pela manutenção familiar ou pela libertação dos enredamentos deste mundo material, refugiam-se na Suprema Personalidade de Deus. Mas as gopis desconhecem semelhantes atividades e motivações: elas não são em nada peritas na execução de tais atividades auspiciosas. Já transcendentalmente iluminadas, tudo o que elas fazem é ocupar seus sentidos purificados a serviço do Senhor na remota aldeia de Vrindavana. As gopis não se interessam por especulação árida, por artes, por música ou por outras condições de vida material. Estão despojadas de toda a compreensão de gozo material e renúncia. O único desejo delas é ver Krishna voltar para gozar de transcendentais passatempos espirituais com elas. As gopis querem que Ele simplesmente fique em Vrindavana de modo que possam prestar-Lhe serviço, para o prazer dEle. Não há um resquício sequer de gozo pessoal dos sentidos na atitude delas. (Chaitanya-charitamrita, Madhya 1.82 sig.).

[3] Título este dado por Prabhupada, já que Visvanatha Cakravarti nomeia esse capítulo como “Os Kumaras São Amaldiçoados pelos Porteiros”.

[4] De acordo com Srila Prabhupada, as glórias de um brahmana descritas neste capítulo não são diferentes das glórias de um vaishnava: “Brahmana é aquele que compreende Brahman, e vaishava é aquele que compreende a Personalidade de Deus. A compreensão do Brahman é o início da compreensão da Personalidade de Deus. Compreendendo-se a Personalidade de Deus, também se conhece o aspecto impessoal do Supremo, ou seja, o Brahman. Portanto, aquele que se converte em vaishava já é brahmana. Deve-se notar que as glórias do brahmana, descritas neste capítulo pelo próprio Senhor, referem-se a Seu devoto­ brahmana, ou vaishava” (Srimad-Bhagavatam 3.16.4 sig.).

Uma resposta

  1. elisa franca e ferreira

    Parabéns, prabhu. Textos e estudos assim são muito importantes. Grata sempre por compartilhar o conhecimento; afinal, de que adianta somente adquiri-lo e não transmiti-lo (bem)? Ele vira toxina se não for bem assimilado e compartilhado… Haribol!

    27 de fevereiro de 2014 às 4:21 PM

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