Resposta a uma Prece
Advaya Dasa
“Fiquei encantado com a sabedoria de Jesus e orei a ele que, se algum dia, um profeta do seu nível viesse à Terra eu gostaria de segui-lo”.
Eu cursava o segundo ano do colegial, que hoje equivaleria ao segundo ano do segundo grau, em uma escola pública de São Bernardo do Campo, onde morava, e meu professor de Filosofia, um padre que renunciara aos votos para se casar, pediu que cada aluno preparasse um trabalho que deveria apresentar para os demais colegas.
Naquela época, eu e um colega chamado Sérgio, um nissei magrinho e genial, costumávamos caminhar pela avenida principal da cidade, quando saíamos do colégio à noite, discutindo os livros que líamos, de grandes autores das literaturas nacional e estrangeira e, não raro, de filósofos como Platão, Sartre e outros.
Sérgio Sakakibara, companheiro de reflexões filosóficas.
Minha formação religiosa católica herdada da família se perdia entre tantos livros e filosofias. Eu passava por uma fase, digamos, materialista. Assim, o tema que escolhi para a palestra foi simplesmente “A Inexistência de Deus”.
Preparei o trabalho com cuidado, e, durante a apresentação oral, nem o professor nem meus colegas mais perspicazes conseguiram refutar meus argumentos. A certa altura, quando eu mencionei a palavra “nada”, um colega perguntou: “Mas o que é o nada?”. “É uma faca sem lâmina da qual foi tirado o cabo, respondi prontamente, citando uma frase do cronista Millôr Fernandes. Meu colega ficou desconcertado com a resposta e prossegui.
Instituto João Ramalho, palco do discurso “A Inexistência de Deus”.
Contudo, ao sair do colégio e caminhar, dessa vez sozinho, em direção ao ponto de ônibus, no meu coração os argumentos que usara redesfilavam um a um, e eu mesmo encontrava suas refutações. Se o nada tivesse que ser definido pela negação da existência, uma vez que existimos e não temos experiência real do vazio, como poderia gerar o mundo fenomenal, mesmo que essa geração fosse temporária?
Com essas e outras dúvidas que eu mesmo colocava, senti o coração um pouco pesado pela palestra que proferi e, a partir daquele dia, iniciei uma grande busca espiritual.
Embora tivesse formação católica e participasse na infância da Congregação Mariana, li a Bíblia pela primeira vez na vida. Fiquei encantado com a sabedoria de Jesus e orei a ele que, se algum dia, um profeta do seu nível viesse à Terra eu gostaria de segui-lo.
Minha busca levou-me depois ao espiritismo kardecista e tornei-me médium em um templo espírita oriental, cujo mentor era um senhor indiano. No chão do templo, havia vários quadrados pintados com os nomes das encarnações de Krishna, mas eu não entendia o que queriam dizer Krishna, Rama, Nrisimha, Varaha e os outros nomes ali grafados.
Sem fantasia, Sr. Arlindo, o mentor do centro espírita oriental onde Advaya leu os nomes de Krishna pela primeira vez.
Com o espiritismo, adotei a teoria da reencarnação. Continuei meus estudos com filosofias esotéricas e, em meados de 1975, quando trabalhava como repórter em um jornal de Santo André, SP, vi os devotos de Krishna pela primeira vez. Na praça central da cidade, eles tocavam karatalas e dançavam. Quem passava por ali dificilmente ficava indiferente. Alguns faziam gestos de curiosidade, outros de apreciação, outros de rejeição.
Da janela do jornal, ouvi o som do kirtana e achei aquilo muito espiritual. Alguns dias depois, encontrei dois devotos “latinos” no calçadão principal da cidade e comprei um pacote de incenso tibetano e dois livros cujos nomes achei sugestivos – Fácil Viagem a Outros Planetas e Além do Nascimento e da Morte.
Os dois primeiros livros comprados por Advaya Dasa e o incenso tibetano.
Os livros despertaram meu interesse pela filosofia que Srila Prabhupada apresentava. As palavras em sânscrito não pareciam um obstáculo. O aroma do incenso embalava minha leitura.
Naquela época, eu namorava uma bancária que trabalhava perto do meu jornal. Estava apaixonado por ela. Um dia, ela me disse que queria desfazer o namoro, porque encontrara outra pessoa. Eu estava no terminal de ônibus ao lado da estação ferroviária e subi o calçadão da Rua Coronel Oliveira Lima desnorteado. Praticamente corria.
Ao chegar perto do lugar onde conhecera os devotos pela primeira vez, vi dois monges muito sorridentes, que refletiam felicidade: prabhus Jagad Vichitra e Gokulotsava.
Prabhu Jagad Vichitra.
Como que adivinhando minha necessidade de alívio, eles me pararam, deram-me uma bolinha doce de gosto inesquecível, que chamavam de “simplesmente maravilhosa”, e começaram a falar sobre a temporariedade e sofrimento da existência material.
Aquilo ficou marcado fortemente em mim.
Alguns dias depois, ao encontrar os devotos fazendo kirtana na Praça do Carmo, a principal da cidade, um deles, prabhu Kuladeva, convidou-me a visitar o templo da Rua Bolívia, no Jardim Prudência, em São Paulo: “Vai lá que você vai gostar da consciência de Krishna”, ele aconselhou.
Praça do Carmo, ao lado do jornal em que Advaya trabalhava, onde viu os devotos pela primeira vez.
Comecei a frequentar o templo junto de um colega do jornal, chamado Vanderlei, que trabalhava no setor de diagramação.
No primeiro dia em que visitamos o templo, achamos tudo muito transcendental, especialmente o astral feliz dos devotos e o cheiro da prasada. Ali, conhecemos uma garota de Santo André chamada Maria, que voltou conosco e nos mostrou um pequeno livrinho branco de canções vaishnavas – Néctar para Cisnes – e nos ensinou o pranama-mantra de Srila Prabhupada. Ela foi a primeira de nós a aderir, sendo iniciada como Murti Devi Dasi. Eu e Vanderlei nos rendemos depois e fomos iniciados como Advaya Dasa e Varunanatha Dasa.
Maria, posteriormente iniciada como Murti Devi Dasi.
O caminho para a rendição a Srila Prabhupada, no entanto, não foi tão simples.
Eu havia comprado livros como o Gita e o Livro de Krishna em espanhol e os primeiros volumes do Bhagavatam impressos em português. Quando ia ao templo aos domingos, enchia os palestrantes de perguntas. A convite de um amigo, comecei a visitar também uma instituição chamada Ananda Marga, que pregava o monismo.
Eu alternava as visitas ao templo Hare Krishna e ao templo da Ananda Marga e ficava especulando: Deus é um menino azul-escuro tocando uma flauta ou um ser impessoal, sem forma, sem cor, sem cheiro?
Como o sistema de adesão à Ananda Marga era menos exigente, fui iniciado ali em uma cerimônia simples, após uma preparação de apenas uma semana. Recebi um mantra pessoal que teria que entoar mentalmente e manter em segredo. Mas ao sair do templo e ir para casa, meu coração sentiu-se apertado. Durante o almoço servido por minha mãe, eu não conseguia falar nada. Parecia entrevado. No íntimo, lembrando a iniciação da manhã, tinha certeza de que não desejava cometer o suicídio espiritual de me fundir no brahman, o espírito impessoal de Deus. Peguei então um livro de Krishna que tinha uma foto de Prabhupada na contracapa e orei a ele: “Por favor, meu bom velhinho, me salve!”. Meu coração se aliviou.
A partir daquele dia, parei de visitar o ashrama impersonalista e passei a me aprofundar mais no estudo do vaishnavismo. Tornei-me vegetariano e cozinhava minha própria prasada, depois de acordar às 4 horas da manhã para cantar japa e ler os livros de Srila Prabhupada.
Mas eu ainda estava apegado a um curso de parapsicologia que frequentava em São Paulo, com o qual tinha o objetivo de provar um dia, de forma cientificamente aceitável, a existência de vida após a morte. Em uma das visitas ao templo Hare Krishna, que já em 1976 estava na Pandiá Calógeras, altura do número 100, durante as férias do jornal em que trabalhava, eu conversei sobre o curso com um devoto recifense que tinha o nome de Jagad Bharata. Ele não podia ser mais simples no seu comentário: “Você só precisa do Bhagavad-gita para provar a existência de vida após a morte”. Aquilo foi tão direto e claro que desisti do curso.
Devotos diante do primeiro templo da rua Pandiá Calógeras, à época da maratona de distribuição de livros de 1976.
Templo da rua Pandiá Calógeras, 56.
Alguns meses depois, eu pedi demissão do jornal e dei o dinheiro recebido em doação para o presidente do templo, Alanath, um devoto alemão, hoje um sannyasi conhecido como Paramadvaiti Swami, abrir a primeira fábrica de incenso no Brasil, a Spiritual Sky, que seria gerida por um devoto venezuelano chamado Panindra.
Eu estava decidido a viver uma vida consciente de Krishna e, apesar do sofrimento que a notícia causou a minha família, especialmente minha mãe, fui morar no templo, que se mudara para o número 54 da mesma rua.
O ashrama borbulhava com o espírito da maratona de distribuição de livros de dezembro.
Prabhupada era a resposta à prece que fiz a Jesus quando li a Bíblia pela primeira vez. E eu queria dedicar minha vida a servi-lo.
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Que pena que o Hare Krishna a partir dos anos 90 entrou em declínio no Ocidente.
22 de maio de 2014 às 9:50 PM
Desculpe, mas não concordo que haja um declínio. O movimento está se desenvolvendo de outra forma e hoje temos uma maneira diferente de penetrar na sociedade, que não foi resultado de um planejamento, mas da ação de Krishna. Passamos de uma abordagem monástica para um movimento congregacional, que, se não tem a visibilidade do perfil antigo, atinge pessoas das quais estávamos antes muito distanciados. Com a criação de um núcleo congregacional forte, o sistema monástico também será mais forte no futuro. É a passagem da “escola de brahmanas” para o sistema varnashrama que está sendo conduzida pelo arranjo de Srila Prabhupada, e isso aparece superficialmente como se fosse um declínio, quando, na verdade, é um avanço. Este movimento é conduzido pessoalmente por Chaitanya Mahaprabhu e vai cumprir sua missão e a previsão das escrituras de que em toda cidade ou aldeia os santos nomes serão glorificados. Uma vez perguntaram a Srila Prabhupada qual seria o resultado da distribuição de livros. Ele respondeu: “Eu não sei. Apenas sigo as ordens do meu mestre espiritual”. Por seu exemplo, podemos ver que nossa avaliação das circunstâncias estará sempre aquém do que elas realmente representam, pois temos a visão e o entendimento limitados por nossos sentidos imperfeitos e a falta de uma visão completa nas três dimensões do tempo. Pode ser que o movimento hoje seja menos “romântico” do que no passado, mas está agindo de outras formas para penetrar em nichos antes inacessíveis. Tenho plena fé em que todo o esforço realizado não foi em vão, pois esta é a promessa de Krishna no Gita: “Neste esforço, não há perda nem diminuição…”. Portanto, não há declínio.
25 de junho de 2014 às 5:49 AM
Lindo depoimento, Advaya prabhu. Escreva mais.
22 de julho de 2014 às 11:16 AM
Maravilhoso o depoimento! Também maravilhosa a explicação do caminho que o movimento tomou!
27 de julho de 2014 às 8:59 AM