O Néctar da Devoção e o Conceito de Rasa

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Lúcio Valera

Escrever sobre a edição brasileira de O Néctar da Devoção, além de ser um grande privilégio, constitui uma tarefa dupla, visto que esta obra cumpre duas funções fundamentais. Primeiro como um “estudo sumário do Bhakti-rasamrita-sindhu, de Srila Rupa Gosvami”, e segundo como um manual “especificamente apresentado para pessoas que estão agora ocupadas no movimento da consciência de Krishna”. Por isso, tratarei da significância da obra que Srila Prabhupada comenta, o Bhakti-rasamrita-sindhu, bem como da importância de sua própria obra, O Néctar da Devoção, em sua missão de divulgar a consciência de Krishna.

Estabelecendo a importância do Bhakti-rasamrita-sindhu, devemos compreendê-lo como uma análise fenomenológica e teológica sobre a natureza de bhakti, a sua prática e a experiência mística resultante. Seu nome significa literalmente: “O oceano (sindhu) nectáreo (amrita) das doçuras do serviço devocional (bhakti-rasa)”.

 

Bhakti significa “devoção amorosa”, e Srila Prabhupada a traduz como “serviço devocional”. No Bhakti-rasamrita-sindhu (1.1.11), Srila Rupa Gosvami define bhakti como a devoção mais elevada, como a busca harmoniosa de Krishna (anukulyena krishnanushilanam), desprovida de conhecimento impessoal (jnana) e ação fruitiva (karma) e não interrompida pelo desejo de coisa alguma (anyabhilashita-shunyam). A busca seria não harmoniosa quando o devoto ainda abriga em seu coração qualquer outro desejo além do serviço a Krishna.

Quanto ao termo rasa, Srila Prabhupada, seguindo seu mestre espiritual, Srila Bhaktisiddhanta Sarasvati Gosvami, o traduz como “doçura”. Rasa originalmente nos Vedas possuía o sentido de “seiva”, “sabor”, e foi utilizado nas Upanishads mais antigas com o sentido de “essência”, sendo frequentemente associado com o “prazer” (ananda). A Taittiriya Upanishad afirma que raso vai sah rasam hy evayam labdhvanandi bhavati: “Ela [a Verdade Absoluta] de fato é rasa. Quem obtém rasa torna-se bem-aventurado”. A passagem acima é citada frequentemente como autoridade védica para a experiência de rasa.

O rasa citado na passagem acima, todavia, certamente não é o rasa técnico da tradição estética do Natya-shastra, de Bharata Muni, frequentemente traduzido como “sentimento dramático” ou “prazer estético”. Nesse contexto, apesar de ainda manter o sentido original inspirado na ideia de ananda, (alegria ou prazer), rasa é algo do plano material e que corresponde ao arrebatamento estético causado no leitor por uma obra de arte. As especulações estéticas sobre rasa buscavam descobrir por que a Arte, em suas manifestações como a poesia, a música, a dança e o drama, dá prazer aos homens de bom gosto.

Rupa Gosvami não foi o primeiro pensador a discutir rasa fora do contexto da teoria estética secular. Houve outros momentos quando o conceito estético de rasa adquiriu uma compreensão religiosa. Foi inicialmente em Bhatta Nayaka (século X), e depois em Abhinavagupta (950-1050 d.C.), que se desenvolveu uma descrição explícita da experiência estética, em termos da experiência interna do espectador. Assim como a experiência estética se realiza quando se saboreiam (asvada) as emoções sem nenhum obstáculo (vighna), a experiência mística (brahmasvada) se realiza pela remoção de obstáculos na consciência. A experiência estética na Arte, apesar de sublime em si, ainda é mundana, pois é causada pelos vasanas, os conteúdos emocionais da consciência, que condicionam todos no mundo da ilusão. A experiência mística, contudo, situa-se no e além do estado de moksha, a liberação da ilusão.

Entretanto, deve ficar bem claro que o conceito de rasa do Bhakti-rasamrita-sindhu difere tanto do conceito de rasa da teoria poética clássica secular, como da teoria espiritualista monista de Abhinavagupta e outros, onde o rasa supremo se condensa na passividade de um shanta-rasa. Certamente, o Bhakti-rasamrita-sindhu também trata da experiência mística, mas não se circunscreve à mística ontológica impessoal do Ser; ele nos eleva até a mística estética e pessoal do Amor. Para Rupa Gosvami, o rasa supremo se expande da paixão de bhakti-rasa, que é comum a todos os rasas; e isso se processa inteiramente dentro da natureza interna (svarupa shakti) de Sri Krishna, a Divindade suprema; não sendo portanto um produto dos vasanas.

O Bhakti-rasamrita-sindhu, quando nos dá a conhecer que a Verdade – o objeto da ontologia –, é o mesmo que o Belo – o objeto da estética –, integra a filosofia da estética com a da devoção. Isso veio pontuar o renascimento de bhakti no século XVI, que se tornaria a marca registrada da tradição devocional de Sri Chaitanya Mahaprabhu e que até hoje persiste nas manifestações contemporâneas do vaishnavismo por todo o mundo. E a mais proeminente presença mundial dessa tradição tem sido a Sociedade Internacional para a Consciência de Krishna, cujo acharya fundador é Srila A.C. Bhaktivedanta Swami Prabhupada.

Em sua edição do Sri Chaitanya-caritamrita (Ma­dhya-lila 22.118), Srila Prabhupada afirma que “em nosso movimento da consciência de Krishna, limitamos nossos estudos dos textos védicos ao Bhagavad-gita, ao Srimad-Bhagavatam, ao Chaitanya-caritamrita e ao Bhakti-rasamrita-sindhu. Esses quatro livros fornecem informações suficientes para quem deseja pregar. Com eles, po­demos compreender muito bem a filosofia e difundir as atividades missionárias pelo mundo inteiro”.

Srila Prabhupada, portanto, em sua missão de nos apresentar este conhecimento sublime, além das três primeiras obras acima mencionadas, escreveu O Néctar da Devoção, como indica logo ao início de seu prefácio, como “um estudo sumário do Bhakti-rasamrita-sindhu”. Versando sobre todos os temas do Bhakti-rasamrita-sindhu, ele nos fornece a essência do que está ali contido, permitindo assim que os devotos de Krishna tenham acesso a todas as informações práticas e teóricas necessárias ao desenvolvimento da sua consciência de Krishna. E isso é feito com grande precisão de detalhes e exemplos, o que de uma forma o torna completo; ninguém precisa ir além dele. Srila Prabhupada, portanto, considera O Néctar da Devoção como um manual destinado especificamente às pessoas ocupadas no movimento da consciência de Krishna.

Contudo, esta obra, como um comentário genuíno do Bhakti-rasamrita-sindhu, será de grande valia não apenas aos devotos ocupados na consciência de Krishna, mas também a todos os buscadores e pesquisadores sérios que queiram conhecer na fonte uma das mais ricas tradições do hinduísmo tradicional: o vaishnavismo gaudiya, de Sri Chaitanya Mahaprabhu, introduzido no Ocidente por Srila Prabhupada.

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Lúcio Valera é licenciado em Filosofia, mestre e doutorando em Ciência da Religião, na linha de pesquisa sobre Religiões e Diálogo, pela Universidade Federal de Juiz de Fora. Sua tese trata sobre “A mística devocional (bhakti) como experiência estética (rasa): Um estudo do Bhakti-rasamrita-sindhu, de Rupa Gosvami”.

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25 02

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