Desejos Imortais

15439733212_16b98ec583_h.jpgRavindra Svarupa Dasa

Carregamos em nós um infatigável desejo por prazer pela convicção de que a felicidade é o nosso direito. Isso conflita com a realidade da nossa condição.

Ninguém gosta de ser portador de más notícias. Isso não apenas é desagradável; pode ser perigoso. Reis rotineiramente costumavam matar de pronto infelizes mensageiros que traziam notícias de derrota.

Não obstante, a maioria das pessoas ainda reconhece que a verdade, independente de quão impalatável, é preferível à ilusão, independente de quão jubilosa. Isso é, afinal, bastante prático, pois os fatos como nos afetam têm certa obstinação implacável diante da qual até mesmo as ilusões mais atrativas têm que, por fim, ceder. Os fatos sempre vencem – simplesmente porque são fatos.

Você provavelmente entendeu que tenho algo deveres desagradável para dizer.

Com efeito, a ilusão que quero destruir é talvez a convicção mais profundamente arraigada e difundida de todas as convicções humanas. Trata-se da ideia de que podemos obter felicidade mediante o desfrute de nossos sentidos, especialmente por meio deste protótipo de todo prazer: o sexo e o amor sexual. Certamente nenhuma ideologia foi buscada com tamanha tenacidade e, ainda assim, produziu um fracasso tão consistente quanto esta. O mais embasbacante é que esse histórico de derrota universal de modo algum emudeceu a esperança de uma vitória iminente.

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A maior das ilusões: a ideia de que podemos obter felicidade mediante o desfrute sexual.

Certamente, com a desintegração das religiões tradicionais e o estabelecimento oficial de filosofias seculares, essa ilusão ganhou a força de uma obsessão. Se não somos mais do que animais sofisticados, se nossa existência como sujeitos de consciência individual é algo atirado a esmo entre duas infinidades de nada, seríamos tolos se não minerássemos nossa cota de determinação para obtermos tanta felicidade sensual quanto possível. Dado que isso é tudo o que temos, é melhor darmos o nosso melhor na busca por isso.

Fantasia Sexual

Tais sentimentos contribuíram fortemente para o atual movimento amplamente difundido de completo despertar sensual através da liberação sexual. Visto que o corpo providencia nosso único acesso à felicidade, temos que extirpar essas repressões contra nosso desempenho, esses impedimentos internos inculcados pelas moralidades e religiões rejeitáveis e negadoras da vida – a repressão dos desejos, o sentimento de culpa, o medo e a aversão ao corpo. Agora que a humanidade cultiva uma vida livre e expansiva, livre de todas as repressões, ela aspira a beber profundamente dos poços do prazer puro, sem contaminações de culpa ou vergonha, curada e plena no espírito através de uma aceitação jubilosa do corpo e celebração do mesmo.

Não deve ser necessária muita experiência com a realidade das relações sexuais para uma pessoa alerta reconhecer que essa visão do sexo irrestrito e jubiloso é uma fantasia irrealizável. Malgrado isso, a fantasia parece continuar exercendo uma fascinação irresistível. Suponho que as pessoas culpem seu desapontamento às repressões ainda não purgadas, culpa e vergonha residuais, e uma falta de confiança no corpo e de rendição ao mesmo.

Sabemos, por baixo do blefe e da bravata, que nossos corpos são frágeis e fracos e em deterioração.

Contudo, nenhum de nós pode de fato confiar por inteiro no corpo e se render a ele, pois sabemos, por baixo do blefe e da bravata, que nossos corpos são frágeis e fracos e em deterioração, e que o maior prazer que ele nos dá é decepcionantemente breve. Damos conosco presos dentro de uma complexidade de músculos e veias que a natureza pode desmantelar a qualquer momento, por meio de quaisquer das terríveis formas que conhecemos. Nossa força e nossa beleza escorrem de variadas formas diariamente. Nosso corpo se desintegra diante de nossos olhos e se torna uma grande fonte de sofrimento para nós, após o que morremos.

Portanto, ninguém pode deixar de se horrorizar com seu corpo (muito embora a mente tenha que reprimir esses sentimentos em autodefesa). Semelhante horror não é um ódio ou um medo artificial imposto por alguma religião que nega a vida. Trata-se apenas de uma reação sensata a uma percepção correta.

Nossa posição é intrinsecamente dividida. Não somos integrados. Possuímos uma consciência desenvolvida que torna nosso encarceramento em corpos como os dos animais algo angustiante. Podemos imaginar, abstrair, generalizar e percorrer muito além dos limites estreitos do lugar e do tempo em que nos encontramos. Nossa mente busca de forma contínua os princípios primordiais por trás de tudo, busca o um que permeia os muitos, busca o permanente que persiste através das mudanças, busca o eterno além do temporário. Enquanto isso, pelejamos espasmodicamente em um corpo moribundo. Nosso espírito busca o infinito; nossos dentes apodrecem.

A consciência que nos chama atenção para tais fortes indicativos da imortalidade também nos força estarmos vividamente atentos ao nosso desamparo diante da natureza, à nossa fragilidade diante do grande peso do universo e à constante ameaça de morte sob a qual vivemos. Mesmo uma criança faz a conexão entre o corte que faz seu dedo sangrar e os animais que vemos estourados nas beiras de estrada.

Ao mesmo tempo, possuímos um infatigável desejo por prazer pela convicção de que a felicidade é o nosso direito. Isso conflita com a realidade da nossa condição. Por conseguinte, a mente reprime com grande poder nossa percepção da realidade e nosso horror perante nossa situação. Qualquer pessoa admitirá verbalmente que sabe que morrerá, mas a fala se revela curiosamente vazia. É como se falasse de outra pessoa. No coração, ela se recusa a acreditar nisso. É assim que ela vive uma vida “feliz” – ao menos por um tempo.

Devemos reconhecer que a maior parte da cultura humana é uma cumplicidade para sustentarmos nossa ilusão vital, um artifício engenhoso para nos mantermos inconscientes. Nós estabelecemos e disputamos por metas artificiais ou simbólicas a fim de que possamos provar para nós mesmos nossa força e o nosso poder, nosso vigor e nossa invulnerabilidade; temos milhares de maneiras de darmos tapinhas nas costas uns dos outros. Todavia, é claro que a natureza prossegue impiedosamente destruindo tudo pelo caminho, ignorando por completo nossos sentimentos poéticos e ternos, nossas faixas e bandeiras, nossa lista de conquistas e vitórias. Enquanto nos mantemos resolutamente preocupados e distraídos, absortos em nossos empreendimentos ilusórios, a morte vem, para a nossa grande surpresa.

Rejeitamos a morte de nossa mente para sermos felizes, mas isso não funciona realmente. Ao contrário, uma vez que neste mundo a vida e a morte são intimamente conectadas, retirar-se da morte é retirar-se da vida. Não é possível se tornar seletivamente inconsciente.

Isso explica a perda daquela visão de mundo imaculado e glorioso que tínhamos quando crianças, uma perda que os poetas lamentam incessantemente. De alguma forma, caímos em desgraça, após o que experienciamos a vida com um espírito enfraquecido e consciência estreitada, uma capacidade reduzida de sentir. A vida adulta nos inicia inteiramente no sistema estabelecido de ilusões, em uma vida de esforço intenso em direção a metas paliativas cujo verdadeiro propósito é nos impedir de pensar. Semelhante vida é necessariamente franzina, acinzentada, insossa e tem uma contracorrente de desespero constante e inoportuno, para a qual a maioria das sociedades providencia alguma sorte de anestético – drogas, televisão ou algo semelhante. A todo momento, no entanto, a maravilha e o esplendor do mundo edênico de nossa infância continua brilhando sobre todos nós, mas demos as costas para isso por temor, pois descobrimos que este é um lugar de morte.

Essa descoberta se dá bastante cedo, mas nosso recolhimento para a irrealidade organizada leva tempo. Contudo, há algo que, mais do que qualquer outra coisa, sela isso: o sexo.

O Fracasso Derradeiro

Minha asserção, é claro, vai bastante de encontro ao princípio do movimento da liberação sexual de que, através da rendição ao sexo, podemos obter uma nova inocência e, deste modo, entrar em um mundo radiante com experiências intensas e jubilosas. Essa postura ignora que o corpo, que é o veículo do prazer sexual, também é o veículo da dor e da doença e da velhice e da morte.

A iniciação no sexo, a experiência de esmagadora subjugação ao corpo pelo prazer, é precisamente a experiência que mais contribui para a reduzida capacidade de viver. Não é algo muito difícil de ver. Nosso primeiro ato sexual impele uma identificação tenaz com o corpo, forjando um forte vínculo com ele. Consequentemente, comprometemo-nos com o projeto de buscar felicidade através dos sentidos. Ao mesmo tempo, acordamos para um medo profundo e permanente:

Selamos o nosso pacto com a mortalidade. Conforme o sexo insensibiliza o espírito, estimula todos os sentidos. Ele se torna o centro de todo o desfrute material. Contudo, os prazeres sexuais dependem completamente de arranjos favoráveis das circunstâncias, em virtude do que quanto mais alguém se compromete em buscar tais prazeres, maior é sua ansiedade. A maior de todas as necessidades é o dinheiro. O sexo traz consigo um contrato de labuta interminável. Garantir parceiros sexuais atrativos é, na melhor das hipóteses, um empreendimento elaborado e problemático, carregado de perigos para a autoestima. À medida que a pessoa envelhece, o empreendimento se torna mais difícil e depende quase inteiramente de sua habilidade em manter seu prestígio social e exibir sua opulência e sua generosidade. Não há fim para a ansiedade e para o medo.

Por outro lado, podemos tentar evitar a ansiedade do “mercado sexual” e aceitarmos o conselho de incontáveis músicas populares buscando quem “amamos” e nos reciproca esse “amor”. Tal descoberta é em si bastante rara, além de quase nunca findar nossos sofrimentos. Ao contrário, nada pode se comparar à nossa angústia quando perdemos o objeto de nosso amor – ou o amor dessa pessoa por nós. O amor não é um refúgio. E descobrimos que, à proporção que as pessoas exigem do casamento a realização sexual, menos duráveis se tornam os relacionamentos.

Nossa inabilidade para manter relacionamentos está no âmago de nosso problema. Toda a nossa felicidade e todas as nossas conquistas dependem de perpetuarmos com sucesso nossos relacionamentos, e nosso impedimento último para a concretização disso se chama “morte”. Pequenos fracassos prefiguram o maior. Queremos viver, expandir nosso organismo, ampliar o poder de nosso ser – em resumo, queremos superar a morte. Visto que o sexo é o ato de criação da vida, voltamo-nos a ele a fim de comungarmos com a energia da vida em si e provar nosso poder vital. Esse poder se corporifica na prole. Nossa família se torna o núcleo de uma fortificação composta de Estado, dinheiro, conexões sociais, privilégio e poder. Alimentamos nossa força vital competindo com inimigos e destruindo-os. Deste modo, prosperamos e expandimos gloriosamente. Contudo, todas essas atividades têm um caráter desesperado e compulsivo. Estamos tentando nos enganar, porque, em nosso íntimo, sabemos muito bem que nada pode nos proteger, sabemos que todos os nossos poderosos amigos, parentes aristocráticos e filhos de rostinhos encantadores são soldados falíveis na guerra, e sabemos que todos nós estamos condenados.

Revolta contra a Morte

Acho que fiz uma retratação honesta de nossa condição humana, e temo que, neste ponto, você possa estar pensando que sou obstinadamente obtuso. Você, com efeito, talvez até mesmo esteja disposto a admitir que todos nós temos que nos satisfazer com menos felicidade na vida do que queremos (como Freud coloca, o “princípio da realidade” substitui o “princípio de prazer”), e você talvez admita que o sexo nunca está à altura do que promete. Ao mesmo tempo, ele nos confere algum prazer, e, com as dores e os sofrimentos que temos que enfrentar, por que não deveríamos aceitar ao menos esse prazer?

O sexo é um impulso biológico; é fundamental para a vida em si. Não podemos nos livrar dele, e muito embora vivenciá-lo não seja algo possível sem problemas, ainda piores são as dificuldades de supressão e frustração. Então, o que podemos fazer? É simplesmente perverso ficar repisando no lado negativo das coisas, e todas essas más notícias são despropositadas.

Mas há sim, eu garanto, um propósito. Eu gostaria que você considerasse a possibilidade de que nossa revolta contra a sentença de morte imposta ao corpo e de que nossa consciência intuitiva de que nos destinamos a mais do que a destruição eventual possa ter uma justificação em um fato obscuro indistintamente percebido. Nossa consciência humana desenvolvida, que nos impede de estarmos confortáveis em um corpo animal, pode indicar ou sintomatizar um aspecto fundamental da existência.

Em outras palavras, consideremos a possibilidade de que nosso envolvimento com sexo, e com todos os desdobramentos frenéticos da vida sexual, constitua um tipo de intoxicação ou torpor da percepção que oclui nossa consciência normal de nossa natureza verdadeira – uma natureza que, na verdade, não está de modo algum sujeita à morte. Se esse é o caso, existe a possibilidade de conhecer, mediante a escavação do eu eterno, uma felicidade inerente e inalienável absolutamente independente dos estados do corpo. É possível obter isso, entretanto, apenas se soubermos remover a estupefação da consciência removendo nossas energias do projeto de satisfação material centrado no sexo.

O projeto de descobrimento do eu eterno que estou propondo não deve ser confundido com os programas repressivos que são propagados sob o nome de “religião”. O projeto de autorrealização não nos convida a suportarmos uma “vida” gélida de frustração e privações a fim de alcançarmos um futuro desfrute paradisíaco. Tampouco propõe que busquemos a felicidade como uma “paz” neutral, a mera ausência de dor, mediante a atrofia das afeições. Ao contrário, propõe que nosso desejo de possuir uma existência infinita de bem-aventurança ininterrupta e sempre crescente é legítimo e que há uma maneira prática para obtermos isso imediatamente, uma maneira tão natural, poderosa e atrativa que todas as outras ocupações perdem seu encanto.

Ignorância Fundamental

Você pode estar pensando, no entanto, que, se houvesse sentido nisso, já teria sido aceito por nossos líderes intelectuais e políticos e embebida na política educacional. O problema é que o conhecimento do sujeito é relativo à sua situação. Quando alguém está habituado ao desfrute sensual e ao sexo, seus instrumentos de percepção funcionam defeituosamente, razão pela qual ele é incapaz de compreender ou experienciar sua própria natureza eterna, independente de quão destacado ele possa ser em outras esferas do saber. Tais pessoas estão afogadas em uma ignorância tão profunda, tão fundamental, que até mesmo seu maior conhecimento é, na verdade, um tipo de avanço em ignorância. Apesar dos repetidos fracassos, apresentam perpetuamente planos impossíveis e quixotescos para trazer a felicidade e parecem ter um tipo de desmemória animalesca para o caráter essencial do mundo. Muito embora desorientem outros, não merecem, em última instância, nossa ira ou nosso escárnio: sofrem como todos os outros.

O conhecimento atinente ao eu eterno e ao método para libertá-lo pode vir apenas de alguém que esteja pessoalmente liberto. Isso sugere que, se existe essa pessoa, tem de haver uma sucessão histórica delas transmitindo o ensinamento. Com efeito, semelhantes tradições aparecem em muitos países e com frequência – apesar de o curso usual ser que elas vicejam por algum tempo, comprometem-se pelo espírito de desfrute material e, então, revelam-se absurdas e são rejeitadas.

Aprendi a ciência da autorrealização com Sua Divina Graça A.C. Bhaktivedanta Swami Prabhupada, que vem em uma tradição histórica que se alonga há milhares de anos na Índia. Os ensinamentos dessa tradição, registrados em antigos textos sânscritos como o Bhagavad-gita e o Srimad-Bhagavatam, reconhecem uma variedade de métodos para a autorrealização, mas recomendam fortemente, acima de todos os outros, o método chamado bhakti-yoga.

Para ajudar a explicar esse método de autolibertação, permita-me primeiramente estabelecer uma descrição mais detalhada do eu e de sua relação com a matéria e outros eus.

Existem duas categorias de eus. Todos os eus são eternos e da natureza de cognição pura e bem-aventurança pura, mas uma categoria contém inumeráveis eus, e a outra, um eu apenas. O eu único é chamado de o Eu Supremo porque mantém completamente os muitos. O único é infinito e autossuficiente; os muitos são infinitesimais e dependentes. (Você pode chamar os muitos eu infinitesimais de “almas” e o eu único e infinito de “Deus”, mas evitei tais termos porque a filosofia e a teologia especulativa os sobrecarregaram com tanta desinformação, controvérsia e má fama que prefiro começar com uma nomenclatura imaculada.) Pode-se comparar o Eu Supremo ao Sol, e os eus subordinados às partículas atômicas do brilho solar; pode-se falar do eu único e supremo como o energético, e os eus numerosos e subordinados como a energia. Assim como os átomos do brilho solar são parte do Sol, embora afastados do mesmo, os eus individuais são partículas separadas do Eu Supremo e, por conseguinte, são qualitativamente idênticos ao supremo, muito embora sejam qualitativamente diminutos. Cada eu fragmentário possui uma parcela minúscula de todas as qualidades do eu completo.

O ambiente no qual o Eu Supremo reside eternamente com os eus subordinados chama-se a energia espiritual, ou interna. Nessa atmosfera, o Eu Supremo é o objeto fixo do amor para os eus subordinados uma vez que Ele é supremamente atrativo – por essa razão, Ele Se chama “Krishna”, “o todo-atrativo”. Cada ato dos eus subordinados expressa seu amor ininterrupto e sempre crescente por Krishna, que lhes retribui com Seus sentimentos pessoais da mesma maneira. Deste modo, cada eu fica completamente satisfeito em virtude de estar completamente absorto em um relacionamento amoroso eterno com a pessoa supremamente amável, a fonte de toda beleza. Krishna reciproca o amor dos eus subordinados sem reservas, em um relacionamento que o tempo não pode interromper. Essa é a condição natural dos eus.

Como a origem de tudo, o Eu Supremo é o desfrutador supremo, e os eus subordinados obtêm seu sustento e sua bem-aventurança participando do desfrute do Eu Supremo. Eles não podem desfrutar de modo independente. Contudo, acontece de alguns eus quererem tal coisa. A despeito de terem tudo – uma vida eterna de bem-aventurança e conhecimento – querem controverter sua natureza essencial como seres subordinados e dependentes. Querem se tornar o Eu Supremo. Em vez de servirem, gostariam de ser servidos. Assim, querem ab-rogar seu relacionamento com Krishna; uma vez que têm uma quantia diminuta da independência que o supremo possui em plenitude, podem fazer isso.

Krishna não viola a pequena independência de Suas partes fragmentárias, e Ele consente com o desejo delas. Para elas – quero dizer, para nós –, Ele cria outro ambiente, chamado “energia material”, ou “energia externa”. É claro que é logicamente impossível para o Eu Supremo realizar o desejo de Seus eus subordinados de serem o supremo, pois, por definição, só pode haver um supremo. É a natureza essencial dos eus subordinados servir o supremo e serem controlados por Ele. Essa natureza não pode ser mudada, mas, na energia material, os pequenos eus podem ter a ilusão de serem independentes, de serem o supremo, de serem os desfrutadores e os controladores. Ao mesmo tempo, permanecem inescapavelmente sob o controle da energia ilusória de Krishna, a qual não conseguem superar.

Retornando a uma Existência Pura

Eus são seres que experienciam, centros de consciência, sujeitos. A matéria não experiencia, não tem subjetividade, é completamente objeto. Eus vivem; a matéria é sem vida. Quando os eus entram na discrepante energia material, obtêm e animam corpos feitos de matéria sem vida. Movidos por um desejo de se esquecerem de Krishna e de sua relação com Ele, identificam-se com corpos de matéria. Deste modo, o eu se torna um ser dividido. Agora, o eu pensa em si como produto da natureza, como um objeto criado e destruído dentro do tempo. Como o corpo é danificado por doenças e violência, como se desintegra com a idade e como morre, o eu pensa: “Isto está acontecendo comigo”. O eu, portanto, entra no interminável horror da existência material, um pesadelo de mortandade do qual não consegue acordar. Quando um corpo é destruído, a natureza o transfere para outro, onde experimenta similar destruição.

O eu se move cegamente por esses corpos, fomentado por um arrebatador apetite por desfrute. Em sua condição original, o eu é cheio de um amor incessante pelo supremo, o eu todo-atrativo. Esse amor é constitucional, não pode ser removido, é a própria vida do eu. Portanto, quando o eu dá as costas ao objeto apropriado de seu amor, esse amor não é aniquilado, mas é transmutado ou redirecionado. Quando o eu entra em contato com a energia material, seu amor por Krishna se transforma em egoísmo, assim como o leite, em contato com ácidos, torna-se coalho.

O impulso erótico, portanto, é certamente parte de nossa constituição essencial, mas é uma transformação do que é, na verdade, nosso amor por Krishna. O desejo, portanto, não pode ser aniquilado, tampouco pode ser reprimido ou suprimido com sucesso. Todavia, pode ser revertido a seu estado original.

Enquanto formos impelidos pelo erotismo, aceitaremos uma sucessão de corpos de matéria. Subimos pela hierarquia de seres. Nos estágios inferiores de nossa evolução, em corpos vegetais e, em seguida, animais, nossa consciência está pesadamente encoberta. Somos sencientes apenas vaga e vacilantemente. Quando, por fim, obtemos corpos humanos, a nossa consciência, a refulgência do eu eterno, torna-se descoberta de maneira única. Essa manifestação mais completa do eu eterno nos seres que ainda habitam corpos materiais cria uma situação problemática, cheia de tensões de uma natureza dividida, e providencia um tipo de sofrimento que animais ignorantes não experimentam. A dádiva da consciência descoberta faz com que nos perguntemos: Quem sou eu? Por que estou aqui? Qual é o meu propósito? Por que tenho que morrer? Tais perguntas nos conduzem à autorrealização. Se não começarmos ao menos por este curso, temos que adotar outro. A revelação de nossa natureza espiritualmente consciente mostra-nos as incongruências de nossa posição na matéria, e a resposta apropriada é buscar liberdade do enredamento material e, destarte, solucionar a questão dos sofrimentos que decorrem da dualidade. Infelizmente, muitíssimas pessoas respondem à necessidade de iluminação e de uma consciência mais elevada tentando desvairadamente buscar intensas satisfações animais que produzem uma percepção reduzida e excitada, e buscando a alienação das drogas. Isso, é claro, atira o eu novamente em corpos animais, nos quais devorará e será devorado, até que, por fim, retorne à forma humana e, mais uma vez, confronte sua natureza eterna.

Se agarramos a chance da consciência humana, podemos solucionar o problema da existência mediante cultivo do eu, liberdade do engaiolamento na matéria e retorno à nossa existência pura em amor eterno e íntimo com Krishna.

Nosso retorno à nossa condição normal é planejado por Krishna. Embora O tenhamos esquecido, Ele não Se esqueceu de nós; Ele permaneceu ao nosso lado, muitíssimo próximo, ao longo de nossa perambulação em escuridão e dor, aguardando que mostrássemos o primeiro bruxuleio de desejo de abandonar nosso projeto ilusório de nos tornarmos o supremo. Quando, nas ocultas profundezas de nosso ser, começamos a ansiar por Krishna e a nos arrependermos de nossa tolice de termos nos afastado, Krishna de pronto nos faz o arranjo de nos encontrarmos com um de Seus representantes autorrealizados. Essa pessoa nos fala explicitamente sobre as condições da existência material, sobre nossa natureza eterna e sobre nossa relação com Krishna, revivendo, então, nosso conhecimento latente. Também nos inicia no caminho da restauração espiritual com instruções práticas e diretas. Provavelmente julgaríamos que a libertação das condições materiais é uma ideia irrealizável se não tivéssemos o representante de Krishna diante de nós como um testemunho vivo de sua fatualidade.

O Gosto do Amor Natural

A essência do programa para devolver o eu a seu estado puro consiste em levar esse eu ao contato direto com Krishna. A maneira mais simples e efetiva para se fazer isso é através do som. Os sons que nomeiam ou descrevem Krishna são de uma natureza completamente diferente dos sons que nomeiam ou descrevem as coisas materiais. Isso porque Krishna é absoluto, ou não dual. A dualidade do mundo material impõe que uma substância e seu nome não possuem nada intrínseco em comum. Se, por exemplo, digo “água, água, água”, minha sede não é saciada. Por outro lado, se digo “Krishna, Krishna, Krishna”, ou qualquer outro nome pessoal do Eu Supremo, entro diretamente em contato com Ele. Usando assim nossa língua para proferirmos e o nossos ouvidos para ouvirmos os nomes do Supremo e a glorificação a Ele, estamos unidos a Ele. Esse contato é potente. Krishna é a pureza suprema, e Sua companhia é purificante. Somos qualitativamente unos com Krishna, e Sua companhia revive essa característica original, redesperta nossa consciência natural. Rapidamente, então, começamos a experienciar nossa natureza eterna e a saborearmos o memorável sabor de nosso amor natural e, à medida que fazemos isso, perdemos interesse pelos substitutos materiais que costumavam nos atrair. Nosso egoísmo começa a se transformar mais uma vez em amor. Assim, o reviver de nossa consciência pura não se baseia na repressão ou supressão do desejo, mas em sua reespiritualização.

Isso é diferente da sublimação. Sublimação é uma troca artificial de um ímpeto ou desejo físico por um substituto mais refinado, e a satisfação que o segundo confere nunca é tão intensa e cativante quanto a satisfação do desejo original. Contudo, quando, em contraste, nosso amor é devolvido a Krishna, esse ganha imensamente em intensidade e poder, pois encontrou seu objeto apropriado e agora está livre do medo de mudança e de morte que estorva seu investimento em coisas materiais. Nosso amor por Krishna começa a fluir sem esforço de nossa parte – livre e desimpedido. Ele se descasca sem limites. Uma vez que Krishna inclui todos os outros eus, nosso amor se expande de modo a abarcar todos os eus. Conforme o sujeito comece a viver e respirar a atmosfera do amor incondicional e ininterrupto por Krishna, ele vê o mundo inteiro por um novo prisma, e suas antigas tentativas de explorá-lo para o seu próprio prazer parecem perversas.

Desde o começo da consciência de Krishna, o sujeito experimenta um gosto positivo pela existência espiritual, em decorrência do que os vícios dos sentidos tornam-se relativamente fáceis de serem abandonados. Os quatro maiores impedimentos da vida espiritual – sexo ilícito, intoxicação, consumo de carne e jogos de azar – podem ser abandonados com surpreendente naturalidade. Quando se tem o que é real, uma vida real de incessante bem-aventurança e conhecimento, inexistem dificuldades para deixar de lado as imitações.

O amor incondicional por Krishna manifesta-se na dedicação incondicional ao serviço a Krishna, em serviços que não têm qualquer desejo de recompensa ou interrupção. Essa é a característica que distingue o amor de sua transformação materialmente pervertida, na qual o ganho pessoal é a motivação. Mesmo a união sexual de um homem com uma mulher pode ser usada a serviço de Krishna. É uma boa fortuna extrema alguém nascer filho de pais dedicados à autorrealização, pois, desde os primeiros instantes, ele vive em uma atmosfera incontaminada por luxúria e cobiça e ele assimila os princípios da vida espiritual junto do leite de sua mãe. Tais crianças somente podem ser concebidas quando os pais se unem especificamente para esse fim e garantem as boas qualidades de seus descendentes através da purificação de sua própria consciência. O primeiro dever dos pais é serem capazes de libertar seus filhos da morte, e a vida familiar dedicada a esse fim é conducente à autorrealização e, como tal, não precisa ser artificialmente renunciada.

Contudo, o sexo para qualquer outro fim – sexo para explorar o corpo para desfrute, para estimular as ilusões do ego – é causa de morte. O sexo, mais do que qualquer outra coisa, fixa a falsa identificação de nosso eu com o corpo, prende-nos na carne e vicia-nos ao aprimoramento material. O desejo sexual jamais pode ser satisfeito, pois ele cresce com o que o alimenta. Esse desejo permanentemente frustrado causa uma ira profunda e duradoura, a qual aprofunda a nossa ilusão. As ilusões gêmeas do desejo e do ódio conduzem-nos através de intermináveis encarcerações corpóreas, atirando-nos vezes e mais vezes em formas que nos enchem de pavor, sofrem o ataque incessante de doenças e atos variados de violência, desintegram-se enquanto ainda as ocupamos e se destroem. Na verdade, nada disso nos acontece, mas nos identificamos erroneamente com o corpo e, portanto, assumimos esses tormentos para nós. A morte é uma ilusão que impusemos sobre nós em consequência do nosso desejo de desfrutar deste mundo. O sexo é a essência desse desejo. Sexo, portanto, é morte.

É completamente justo que nos rebelemos contra a sentença de morte. É completamente apropriado que busquemos uma vida de prazer ininterrupto, infindável e sem a contaminação de vergonha ou medo. É completamente natural que queiramos ser integrados e consistentes conosco, livres da dualidade. A ilusão mais mortal é pensar que o sexo é um caminho para essas metas, pois, na verdade, é o maior impedimento. Trata-se da causa de nossa doença, o que aceitamos como nossa cura.

As restrições à atividade sexual prescritas pelas religiões destinavam-se originalmente a auxiliar na superação deste que é o maior obstáculo à felicidade humana. Infelizmente, tudo o que resta hoje são as restrições e negações, ao passo que a verdadeira razão para as mesmas foi esquecida.

Contudo, o caminho viável da autorrealização foi reaberto. Pode ser que lhe pareça que, independente de quão bem intencionado você seja, o ímpeto sexual é poderoso demais para ser superado. É verdade que é forte demais para supressão artificial, mas sei por experiência prática que, se você simplesmente começar a adotar as práticas positivas do bhakti-yoga, em especial a recitação do nome de Krishna na forma do mantra Hare Krishna, você verá que o que parecia uma barreira deveras formidável se torna simples de ser transposta, e que sua vida autêntica, além do mundo de nascimentos e mortes, está prontamente disponível.

Leia também: A Prática do Celibato, Cultura do Desapego.

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