Anarta: Metalcore para uma Consciência de Paz em Meio ao Caos
Entrevista com Flávio Pará
Projeto de metal pesado se apresenta como uma ferramenta de comunicação da proposta védica de autorreforma e reforma do mundo. Flávio Pará, à frente do Anarta, fala de seu contato com a banda Shelter, a identidade sonora de suas músicas, o porquê da atração por Nrisimhadeva entre os fãs de krishnacore, o sistema político-social proposto pelos Vedas e mais.
Volta ao Supremo: Como se deu seu primeiro contato com o pensamento vaishnava?
Flávio Pará: Na década de 1990, eu tocava numa banda de hardcore chamada Carmina Burana. Nós tivemos a honra de abrir para o Shelter quando eles passaram por Belém em 1996. Lembro como se fosse hoje: o Carmina Burana tocava um cover de Rage Against the Machine, “Killing in the Name”. No momento em que tocamos essa música, os integrantes do Shelter apareceram ao lado do palco, bem próximo às caixas de som voltadas para o público e ficaram “curtindo” o som! Todos os integrantes da minha banda eram fãs do Shelter, pois, nessa época, era o auge da carreira deles com o CD “Mantra”.
Flávio Pará com o Shelter, em 1996, nos bastidores de sua apresentação em Belém.
Foi um momento muito especial para todos da banda. Uma das bandas que tínhamos como discografia básica agora estava agitando em nosso show! A energia deles me contagiou e me deixou curioso. Esse foi o meu primeiro contato com os Hare Krishnas. Inesquecível.
Volta ao Supremo: Como surgiu a Anarta, a banda de um homem só?
Flávio Pará: Surgiu a partir da minha necessidade de mudar de cidade a trabalho. No começo, o Anarta era composto por uma banda convencional, formada por Patrick Corrêa com a guitarra; seu irmão, Luciano Naninho, com a bateria; William Perreira no baixo; Claudia Picorelli no vocal, e eu com guitarra e back vocal.
Como o conceito e nome da banda eram criações basicamente minhas, e a única música que chegamos a ensaiar foi a interpretação do mantra Nrishimha Pranama, foi um processo natural o fato de eu continuar seguindo com a ideia do projeto Anarta adiante.
Nessas andanças pelo Brasil, fui compondo, gravando, produzindo e fazendo boas parcerias musicais e boas amizades. O meu notebook é o meu estúdio.
A “cozinha” da banda, que ficou em Belém na ocasião da minha mudança de estado, virou outro projeto que até hoje está aí na cena paraense “bombando”: o Red Nightmare, que hoje só conta com o Luciano, baterista, da formação original.
Volta ao Supremo: A que a banda se propõe?
Flávio Pará: Anarta é um projeto que visa a manutenção de uma consciência de paz em meio ao caos, com letras e temas fundamentados em preceitos védicos.
Volta ao Supremo: Além dos preceitos védicos, as letras parecem abordar também a consciência alimentar, a desigualdade social e outros tópicos. Ou tudo isso passaria pelos preceitos védicos, de qualquer maneira?
Flávio Pará: Sim, de uma forma ou de outra, passam por conceitos védicos. Por exemplo, na música “Contém Glúten”, o refrão diz: “Se és o que comes, mas não sabes o que comes, como saberás quem és?”. Dessa forma, a letra da música incita o autoquestionamento de quem nós somos e de que somos feitos. Dentro dos preceitos védicos, o primeiro passo é esse questionamento de nossa natureza essencial. Vale lembrar que os Vedas não são apenas uma cartilha litúrgica baseada no tão difundido “rec-repete”, muito visto na religiosidade popular. A filosofia védica estimula o pensamento e a inteligência atinada. O conceito do Anarta é fruto do verdadeiro anarquismo: o espiritual.
O conceito do Anarta é fruto do verdadeiro anarquismo: o espiritual.
Sou apenas um estudante neófito desta filosofia, mas, como esse projeto é inspirado e dedicado a A.C. Bhaktivedanta Swami Prabhupada, acho que posso ousar falar com base no seu exemplo de um perfeito anarquista espiritual, e que não negou nenhum outro sistema. Na verdade, Prabhupada trouxe uma proposta (a védica) para harmonizar todos os sistemas sociais, sejam eles anarquista, monarquista, capitalista ou comunista – não dentro de uma dialética secular e materialista, e sim dentro de uma dialética metafísica e atemporal. O Anarta é apenas uma ferramenta de comunicação dessa proposta.
Volta ao Supremo: Parece algo inconcretizável. Como conciliar monarquia com comunismo, ou capitalismo com anarquia, ou, ainda mais difícil, todos os quatro?
Flávio Pará: Parece mesmo. É óbvio que não é o Anarta que vai resolver essa questão. Como eu disse, o Anarta é só uma ferramenta de apoio. Se quisermos nos aprofundar, convido que o leitor leia a Volta ao Supremo e os livros de Prabhupada constantemente. Contudo, podemos pincelar a questão.
Dentro das antigas sociedades védicas, esses sistemas viviam em harmonia, no espírito de intercooperação, tendo o Supremo como o epicentro. A classe dos anarquistas era composta pelos brahmanas, que não dependiam de nenhum governante, militar, burocrata, comerciante ou qualquer membro da sociedade, senão que viviam de forma autossuficiente nas florestas. Eram os orientadores da sociedade, exerciam a função de professores, astrólogos, médicos, sacerdotes e outras funções intelectuais. Por uma questão cultural e de bom senso, as outras classes os ajudavam. Os monarcas eram os governantes e militares, reis que só eram santos devido à orientação dessa classe pura bramânica, ou anarquista. Esses monarcas ou monarquistas protegiam essa classe, bem como outras, como os capitalistas, ou os vaishyas, que eram responsáveis pela produção e pelo comércio. Eles acumulavam a riqueza, porém a distribuíam na forma de imposto para os monarquistas em troca de proteção e liberdade de comércio, e alimentavam e supriam os anarquistas brahmanas em troca de orientação educacional, religiosa e filosófica. Já os comunistas eram a classe dos shudras, conhecidos também como trabalhadores braçais. Eles tinham uma maior mobilidade entre as classes, pois eles serviam todas as outras classes. Dessa forma, eles cumpriam um papel muito especial, pois, trabalhando bem para um brahmana, um trabalhador braçal poderia adquirir as qualidades de um brahmana; trabalhando bem para um governante, poderia adquirir as qualidades de um bom rei; trabalhando bem para um comerciante, poderia se tornar uma hábil capitalista comerciante. Essa classe comunista era bem suprida, o que pacificava suas mentes funcionais. Claro que há outras nuances, mas, para uma entrevista de uma banda, acho que esse resumo está bom. Mais uma vez, para quem deseja se aprofundar nos estudos desse tipo de proposta, recomendo a leitura da Volta ao Supremo e dos livros de Prabhupada.
Volta ao Supremo: Observando as bandas de hardcore, metalcore ou de rock em geral dos devotos de Krishna, parece haver uma atração especial por Nrisimhadeva. Isso parece não ser diferente em relação a você, que coloca já na segunda faixa do disco Entre Guirlandas e Entranhas uma música em homenagem a Nrisimhadeva. Por que esse gosto entre as bandas de rock/hardcore devocional pelo avatar homem-leão?
Flávio Pará: Esse avatar é a forma da ira suprema encarnada. Deve ser por causa dessa sua aparência tão medonha que os devotos roqueiros gostam. Na história de Seu aparecimento, muito sangue foi jorrado das entranhas do demônio Hiranyakashipur por meio de Suas garras. Tem coisa mais “death metal” do que fazer de entranhas, guirlandas? Pois foi com as entranhas do demônio que a ira personificada da Pessoa Suprema se enguirlandou.
Capa de “Entre Guirlandas e Entranhas”.
Aliás, essa cena é o que inspirou o nome do álbum: “Entre Guirlandas e Entranhas”. Esse é o ponto de vista do demônio que estava com o abdômen dilacerado no colo de Nrisimhadeva, literalmente entre as guirlandas de tripas no pescoço do homem-leão e suas próprias entranhas expostas. Totalmente rock ’n’ roll!
Encontre no fim desta entrevista um link para ouvir ou baixar o álbum completo “Entre Guirlandas e Entranhas”.
Volta ao Supremo: E qual o significado de Anarta?
Flávio Pará: Anarta: uma palavra que vem de uma língua morta, ou seja, que não é mais falada por povo nenhum, mas que foi tombada pela UNESCO como patrimônio da humanidade – o sânscrito. Aliás, o sânscrito é o único patrimônio tombado que é de caráter intelectual. Como fala o “mano da baixada”: “o bagulho é quente”. É nessa língua que são vibrados os famosos mantras, e na qual são escritos os textos que definem as principais premissas das filosofias orientais. Esses textos sânscritos são datados de mais de 5 mil anos.
Na verdade, na transliteração latina da palavra Anarta, ela é com “th”: anartha. Mas achei de mais fácil assimilação usar no projeto “Anarta” sem o “th”, pedindo licença aos filósofos, literatos e antropólogos de plantão, claro.
O significado literal da palavra é: “Coisas indesejáveis”, ou maus hábitos, vícios, aquilo que impede o desenvolvimento progressivo do ser humano.
De acordo com esses antigos textos, o ato de desejar é algo natural da mente humana, mas, dependendo dos anarthas da pessoa, ou seja, dos seus maus hábitos, dos seus vícios, os desejos se pervertem. E, do jeito que o mundo está, parece que os anarthas são vendidos em feira-livre: compre um e leve três. Você pode observar isso na tevê, na sua rua ou até mesmo dentro de sua casa: violência, hipocrisia, intolerância. Vixi, o “bagulho” é quente mesmo.
O ponto central do Anarta é levantar a questão de que criticar todos sabem fazer bem, todos vivem reivindicando isso ou aquilo, criticando o governo, o vizinho, o pai, a mãe, o cão, o gato. Contudo, pare um pouco e pense sob essa ótica dos anarthas. Será que o problema está nos outros? Será que, saindo de um âmbito individual até o coletivo, os maus hábitos, ou anarthas, não geram consequências extremamente destruidoras, tanto para o corpo físico, quanto para o corpo social, quanto para o corpo ambiental (planeta Terra)?
Não sou nenhum tipo de Mahatma Gandhi, nem “um” Madre Tereza de Calcutá, mas, observando meus anarthas instalados na minha mente e meus sentidos, pensei num nome, com a ajuda de alguns devotos especiais, que alerte a todos e os inspirem a olhar para dentro de si mesmos e meditar naquilo que impede o seu verdadeiro progresso como ser humano. Olhe, por exemplo, um fato aparentemente banal, mas que diz respeito a um mau hábito que muitos têm: a maior causa de desmatamento da Amazônia, hoje, deve-se à criação de pastos para a agropecuária. Tendo isso em vista, quando se come um singelo e saboroso bife acebolado da mamãe, aparentemente tão ingenuamente feito com amor pela sua mama, significa o dilaceramento de muitas vidas de gado, o desmatamento da maior floresta do mundo e, como consequência, o aquecimento global. Pense de uma forma macro e ampliada e, então, imagine a soma de todos os hábitos de se comer bife no almoço de uma nação inteira.
Para sabermos o que é liberação ou liberdade, devemos saber o que é aprisionamento ou o que nos aprisiona: os anarthas.
Volta ao Supremo: Sua fonte de inspiração está bem clara. Como se dá o seu processo de composição?
Flávio Pará: No processo de composição, tenho duas linhas mestras: letra e arranjo.
Se você for analisar o Anarta, verá que cada música tem uma “cara”. Não é do tipo de projeto que você escuta uma canção e conhece, assim, toda a linha musical do projeto. Cada canção conta uma história, e a música cria a ambiência ideal para o tema abordado, mas tudo dentro do estilo metal pesado. Na canção “Nrisimha Pranama”, por exemplo, temos um tom épico, pois se trata de uma história de um reinado antiquíssimo de uma era védica. A canção “Bife Acebolado” tem um tom musical mais sarcástico, pois fala de uma hipocrisia institucionalizada. Dessa forma, a letra combina com o arranjo de acordo com seu “teor” conceitual.
Volta ao Supremo: Por fim, como foi a experiência de gravar o CD e criar sua identidade visual?
Flávio Pará: A experiência de gravar esse álbum foi mais do que uma experiência técnica; foi também uma experiência engrandecedora de vida. Fiz grandes parcerias e amizades, e tive bons aprendizados técnicos. Gostaria de aproveitar a ocasião para agradecer a esses amigos que me ajudaram participando, compondo, tocando ou cantando. Grato a Maha Vibhuti, que compôs o poema Descamisados, que virou música quando eu estava morando em Natal, RN, e tive o prazer de produzir com esse amigo e parceiro. Grato também ao meu amigo baiano Sérgio Caetano, compositor da letra Serpentes Sedentas. Sou agradecido a André Azul, amigo paulista que compôs parte do arranjo de Contém Glúten. Agradeço a Zé Lucas, que compôs a letra e gravou o vocal de Not Rough Enough. Grato a Cássio Luiz, de Natal, por ter gravado um solo de violão maravilhoso na canção Diálogo Sacropunk. Há muitas outras pessoas a quem tenho que agradecer, mas vou deixar para o encarte do CD, pois a lista é longa. Um dos maiores legados dessa experiência são essas amizades.
Compor e gravar essas músicas foi um verdadeiro refúgio saudável. Mergulhando em tópicos filosóficos e em minhas emoções mais profundas, compus letras e canções que são uma espécie de “livro aberto” sobre minha vida, pensamentos e ideais. Se alguém quer me conhecer mais um pouco como alma e como um humano com um corpo e mente com natureza própria, é só escutar as letras e músicas do Anarta.
A identidade visual é inspirada na música Nrisimha Pranama. É a “foto” do próprio avatar metade homem e metade leão. O tom que essa foto passa é de contemplação. Acho que é o teor ideal para um projeto de metalcore filosófico.
Escute ou baixe o álbum “Entre Guirlandas e Entranhas” completo e gratuito: http://anarta.bandcamp.com/releases.
Entrevista conduzida por Bhagavan Dasa em nome de Volta ao Supremo. Todo o conteúdo das publicações de Volta ao Supremo é de inteira responsabilidade de seus respectivos autores, tanto o conteúdo textual como de imagens.
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